terça-feira, 30 de agosto de 2011

A vida é uma caixinha de surpresas

Gosto desta imagem. Gosto de pensar que a vida é mesmo uma caixinha de presentes, de presentes de todos os tipos, inclusive aqueles que a gente não gosta muito.

Lembro de um livro chamado “O valor das pequenas coisas”, que ganhei de aniversário da Titi, melhor amiga da minha mãe. Ainda tenho na lembrança a satisfação dela, diante do meu poder de atriz, em meus plenos dez anos, agradecendo muito contente pelo presente que, secretamente, achei descabido.

“Podia ter sido um livro de histórias”, comentei mais tarde, com a minha mãe. E ela respondeu:

“Hoje não te serve, mas um dia vai te servir”.

O fato é que o presente da Titi me acompanhou por anos, sem nunca ter sido lido. Acabou se perdendo em alguma mudança de endereço. Mas bastou a capa pra dar o seu recado... sob as palavras emblemáticas do título, estava uma moça de vestido marrom, abraçada a um buquê de girassóis: ok, Titi, entendi tudinho.

Anos mais tarde, um dia falei pra minha mãe:

-- Na próxima encarnação, quando Deus me disser pra escolher de presente um dom, vou pedir uma voz maravilhosa pra cantar para as pessoas e fazer com que elas fiquem emocionadas.

E ela, que me gostava de ler, mandou na lata:

-- E você vai ser minha filha de novo, e me dizer que deveria ter pedido a Deus o dom de escrever e, então, tocar o coração das pessoas.

Perdoem-me as divagações, mas minha cabeça, que já voa normalmente, anda mais voadora por estes dias, e lembrei dessas passagens justamente por pensar que a vida é uma caixinha de surpresas.

Vejam este blog, que carinhosamente chamo de “bloguinho”... de dentro da caixa de surpresas, ele nasceu como um simples projeto profissional, mas na minha imaginação foi ganhando outras formas: neste momento de solidão que atravesso, ele está mais pra cachorro de estimação, daqueles que nunca tiveram pedigree, mas cujo rabo balançante é um aviso de vigília sobre o tapete ao lado da cama. Sempre por perto.

Então me vem outra imagem, porque afinal de contas sou mineira da gema: é uma cozinha de porta aberta, café no bule e bolo no fogão. Nas janelas, o sol da manhã bate tão amarelinho! E aquele cachorro de antes agora está na soleira, tirando um sono de preguiça enquanto as visitas entram e saem... muito naturalmente vão se formando os laços da amizade que têm tanto a ver com os dias de hoje... virtuais, invisíveis, sem rosto. Mas nem por isso imaginários.

Da minha caixinha de surpresas, saiu um bilhete de partida para o meu velho Dannemann, que viajou no domingo, no bonde das 22h30. O mundo ficou diferente, sinto-me um bicho em forçosa adaptação... e vejo que este blog, que tanta força me tem trazido, tantas mensagens de empatia e dor compartilhada... este blog é mais um presente enviado por Deus.


Nós dois agradecemos por tudo!

Leia também:
Todo mundo é pé na cova

sábado, 27 de agosto de 2011

Atlas e o aquário

Compartilho com vocês um poema que escrevi em 1992, sobre a tristeza do meu pai diante do falecimento da minha mãe.



Havia a marionete em meio à renda na janela
E o aquário sob o peitoril,
Na mesa carcomida por carunchos.

Nunca soube ao certo quantos peixes eram,
E, entre eles, a solidão de um cavalo-marinho, sobre o qual, talvez,
Meu pai estendesse demorado olhar,
Num tempo hoje perdido.

Havia em meu rosto a cor das framboesas.
Nos olhos, boiavam estas jabuticabas
(que hoje, tanto tempo já passado,
Persistem na maturação perpétua,
Carcomidas pelo apetite das visões
De tantos dias).

Era furtivo meu caminhar por entre um quarto e outro,
Como furtivo era o olhar às curvas costas do meu pai
E à contemplação diária a que se expunha, frente ao aquário.

Por vezes, creio tê-lo visto trocar olhares com um peixe,
E recolhida à sagacidade dos meus poucos anos,
Pressentia no silêncio o peso incontestável
Das confissões não ditas.

E tantas foram as confissões restritas ao olhar aguado de um peixe,
E tão poucas as palavras a passar por mim como enxurrada,
Que solidária a mim, por ver-me órfã de um pai vivo,
E solidária a este pai, por não deixar de amá-lo,
Tentei fazer-me cúmplice daquele mesmo peixe,
Embora seu olhar jamais me tenha definido
(talvez resposta sua, ao meu desejo de invasão).

Altivo e duro, o corpo do meu pai
(então humano, diante do aquário)
Parecia descansar de um peso insuportável,
Que talvez lhe fosse a vida.

Atlas a sustentar dores do mundo sobre as costas,
Meu pai me sugeria a sentença de carregar todas as marcas
De um passado morto;
De um passado imóvel tanto quanto a solidão de um cavalo-marinho;
De um passado mudo e fixo
Como o olhar daquele peixe enclausurado pelo vidro.

Mortas pelo tempo,
Esbranquiçaram-se aquelas framboesas.
Ainda as jabuticabas em meus olhos, cheios de visões.
Ainda em meus olhos, bóiam suaves as mãos de minha mãe
A agitar a água de um aquário,
A alimentar um peixe...
Quase como um aceno a tão guardadas,
Tão aguadas solidões.


(Fernanda Dannemann)




Minha mãe, eu e papai, em 1970

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Vai ter festa no céu

Sim, vai ter festa... porque meu pai está voltando pra casa.

Minha mãe estará com seu melhor vestido, com os cabelos soltos como ele gosta de ver; escolherá um disco do Fagner para tocar na vitrola e vai preparar ovos nevados. É um encontro há muito esperado: vinte anos desde o último olhar. E dançarão de novo, de rosto colado, enquanto ele mal acreditará estar ali.

Como na infância, minha irmã correrá em sua direção. E ele poderá sentir outra vez a felicidade, antes perdida, que é tê-la em seus braços.

Se aproxima o momento da libertação. De uma alegria que, para nós, que aqui neste mundo ficamos, é quase impossível alcançar: estou triste, uma tristeza profunda que só os órfãos entendem, porque a conhecem bem. A tristeza de não ter mais para onde voltar, porque a simples palavra "papai" nos leva de volta à casa da infância... aquela de onde nosso coração jamais se muda.

Mas sinto também alegria, confesso: alegria por ele, que me ensinou a amar a vida e colocou em mim tantas coisas de si mesmo... acho graça em sua herança: a impaciência, o nariz longo e sempre em pé; o humor ácido, as respostas prontas na ponta da língua, o prazer na brincadeira, o desejo imenso de ser feliz.

Meu pai me inspira a vontade e a garra de viver porque é um lutador acima de tudo, um sobrevivente que jamais teve pena de si mesmo. Um combatente incansável diante das lutas que travou em seus 78 anos. Um vencedor pelo simples fato de não entregar os pontos nem mesmo diante das maiores dores e decepções. Um batalhador que viveu em busca da alegria de ser grande dentro de suas possibilidades. Um verdadeiro gladiador diante das adversidades.

Tenho um orgulho imenso de parecer-me com ele e de sentir o coração leve por ter sido a melhor filha que pude... por não ter deixado nada por dizer: nenhum "eu te amo"; nenhum "muito obrigada por ter feito o seu melhor"; nenhum "me perdoe se o magoei". A ele dedico (como à minha mãe, nestes vinte anos) todo o meu esforço em ser um ser humano melhor, um ser humano decente, um ser humano do bem: este é o meu maior "muito obrigada".

Meu coração acelera de frio pela solidão da orfandade, e pede a Deus que o receba ao lado de minha mãe, de minha irmã, dos meus avós e de todos os amigos que por lá estão. E que, juntos, celebrem seu reencontro e as vitórias que terão ficado pra trás.

E por nós, que aqui ficamos... peço a Deus que nos livre do egoísmo, para que o deixemos ser livre em paz.



segunda-feira, 22 de agosto de 2011

"A inveja não me deixa botar azeitona na empada de ninguém!"

Mantenho distância de gente mercenária. “Elogiar? Mas ninguém me elogia!”, dizem os negociantes da auto-estima, que distorcem a célebre frase “é dando que se recebe”. Da mesma forma, aqueles que economizam favores ou gentilezas usam esta justificativa, e não colocam azeitona na empada de ninguém. Não colocam porque a inveja não deixa.

Aqui com meus botões, penso que este é o típico comportamento de gente que transforma tudo em competição, inclusive a amizade. E acreditam que os outros não percebem, porque, claro, os outros são burros. Deus me livre!

Foi numa conversa sobre isso, com minha grande amiga, a Dra. Vera, mulher moderna nos seus 80 anos de sabedoria, que comentei imaginar a vida em retiro uma boa alternativa a este mundo tão competitivo e invejoso... e acabei me lembrando de Santa Teresinha do Menino Jesus, de quem sou fã.

-- Santa Teresinha padeceu no convento! As freiras não gostavam dela – me disse a Dra. Vera.

Pasmei.

-- As freiras não gostavam dela?!
-- Freira também é gente, minha filha. O convento está cheio de quê? De gente. Onde tem gente, também estão os defeitos.

Acabou-se ali a veleidade que alimentei, desde criança, de, depois de curtir bastante a vida, acabar meus dias no ambiente leve de um convento, cercada de muitas amiguinhas boa-praça. Quer dizer que Santa Teresinha, que foi -- e continua sendo – uma santa, e que sofreu muito devido à humildade, injustiça e doença, além de tudo teve que aturar gente que tinha inveja dela?!

Como meu pensamento voa, e disso já sabemos, acabei me lembrando do dia em que minha irmã Teresa, doentíssima, recebeu a médica acupunturista em casa, para tentar lhe aplacar dores que nenhum remédio aplacava. A doutora, formada na China, chegou elegante como sempre, em seu terninho, mas mal-humorada devido ao trânsito. De tão dedicada à carreira profissional, não teve tempo para casar-se ou ter filhos: rica e famosa, especializou-se em doentes terminais, mas detestava atender em domicílio.

Cercada por filhos e marido dedicadíssimos, minha irmã sofria na cama, usando pela primeira vez um autêntico robe de seda floral japonês, em tons de verde água, que a tia havia dado um jeito de mandar vir do outro lado do mundo, na tentativa de alegrá-la.

A médica pisou no quarto com seu salto alto e não disfarçou o encantamento diante da peça. Mal começou a espetar as agulhas, perguntou sua origem. Passou a sessão falando de suas viagens ao Oriente e, ainda que minha irmã reclamasse do peso de sua mão, mais pareceu estar num salão de chá, jogando cartas com as colegas.

Lá pelas tantas, foi à sala, a pretexto de beber água, e sacou o celular para uma ligação internacional. Dali mesmo, encomendou um robe de seda floral verde água, e entrou quase eufórica no quarto, para dar a notícia à paciente: seu robe chegaria em poucos dias!

Minha irmã encerrou a sessão e depois me perguntou, com uma expressão quase vencida no olhar:
-- Como pode, uma pessoa à beira da morte, ainda causar inveja em alguém?

Carrego esta pergunta há anos, e agora a divido com vocês.

Um momento feliz na vida da Teresa

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O arrependimento é um fruto amargo

-- Mãe, me leva na pracinha?

-- A mamãe tá cansada, filha...

Um dia a Michele cresceu. Nunca mais pediu pra ir à pracinha. E a Lucy, mãe dela, começou a sofrer a dor aguda e irreversível do arrependimento, principalmente porque o tempo havia passado e não era possível voltar atrás, mudar as coisas, levar a Michele à pracinha, afinal.

Não há remédio que cure esta dor que a Lucy sente: nem mesmo todas as lembranças do quanto sua vida era dura; nem todas as certezas de que não foi por descaso ou desamor; nem todos os perdões generosamente dados pela Michele, que acha até graça em tanta culpa... nada liberta o coração arrependido da Lucy.

Eu sinto esta pontada de dor quando minha mãe passa, diante dos meus olhos, subindo a rua de casa carregando as sacolas pesadas do supermercado. Eu a vi, mas não a ajudei. Preferi continuar de papo furado com a turminha... ou quando revejo meus sobrinhos em sua infância, e penso em todas as oportunidades que perdi de dar-lhes banho, de brincar com eles, de beijar mais aquelas bochechas gordinhas. Eles cresceram junto com a Michele, e eu sofro junto com a Lucy.

Meu pai me contou, uma vez, sobre um perdão que deixou de conceder, e que nunca mais pôde conceder, porque a pessoa que pedia absolvição morreu subitamente, deixando-o com este lamento que já dura mais de trinta anos, e que o incomoda tanto quanto uma queimadura recente.

Sei de tantas situações desta mesma natureza, que não entendo o porquê de continuarmos resvalando no mesmo erro, como se nosso egoísmo fosse uma areia movediça puxando-nos para o fundo, para a escuridão, para onde não há saída: só o arrependimento.

Talvez a raiz desta “árvore do arrependimento” __que, acredito, todos nós trazemos plantada em nosso jardim interno__ seja a ilusão de que sempre teremos oportunidade para agradar as pessoas, para aprender mais sobre a gentileza e sobre a generosidade.

Sendo assim, “da próxima vez eu carrego as sacolas pesadas do supermercado para a minha mãe, porque agora estou ocupada”.

Ilusão.

Não tive outra oportunidade.

Da minha preguiça, descaso, ilusão, egoísmo ou que quer que tenha sido, só sobrou mesmo esta árvore, cujos frutos amargos serei forçada a comer pelo resto da vida.

A Lucy não pode nem ver um balanço, porque o coração dela dói

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Barack Obama, Dom Quixote, você e eu




Muito antes de Barack Obama dizer “yes, we can!” um cara meio doido, vestido de cavaleiro andante, já dizia, de cima do seu cavalo, que sim, nós podemos, nós chegaremos lá!

Não é à toa que Alonso Quijano deixou de ser quem era para tornar-se Dom Quixote, um tipo que valorizava, acima de tudo, o esforço próprio, mirando-se nos heróis dos livros de aventura, onde encontrou inspiração para viver.

Não é à toa também que o livro de Cervantes é um best-seller de 400 anos, com fãs ardorosos como Freud e Dostoiévski. Dou de presente a vocês a versão do cavaleiro feita pelo argentino Miguel Rep, para o livro da Editorial Castalla, que por enquanto temos que comprar no exterior.

Embora divida as opiniões, Dom Quixote, para mim, está longe de ser uma comédia. Não consigo rir da tragédia humana, principalmente quando é proveniente da boa-vontade. E nosso herói – apesar da ironia sombria que o cerca, do ridículo de sua bravura – não aceita as realidades da vida porque anseia ser grande... e encontra para si um propósito sublime, ainda que precise recorrer à imaginação para fazer de uma hospedaria um castelo; de algumas ovelhas um exército; daqueles moinhos os gigantes por vencer.

Para mim é elogio ser chamada de “quixotesca”, pois quanta persistência me inspira o personagem!

Aliás, acho que por isso mesmo o livro tornou-se universal: porque o homem, só por ter nascido homem, nasceu um pouco Dom Quixote também.



domingo, 14 de agosto de 2011

Eu não sou Will Smith !!!


Várias pessoas já me disseram, com ares de saudosismo ou frustração, que “todos os amigos de verdade a gente encontra na infância”... porque depois disso o ser humano fica ruim demais para fazer amigos.

 Não sei da sua infância, caro Leitor, mas no caso da minha, salvo umas três ou quatro amiguinhas, com as quais perdi contato, o resto, confesso, era um bando de coisinhas horrorosas, do tipo comum que a gente mais encontra vida afora.

Não, a infância não é um mar de rosas, e quem acredita que toda criança é um anjo realmente não entende nada de crianças. Muitas são, simplesmente, do mal: cruéis, debochadas, insolentes, egoístas, opressoras, manipuladoras e invejosas. Estão aí os professores, para atestar o que digo.

A questão é que, desde a barriga da mãe, já somos o que de fato seremos por toda a vida. Alguém aí já leu aquela história incrível do Machado, “Esaú e Jacó”, os gêmeos que quase saíram no tapa em plena gestação?

Pra piorar a situação, além de desconfiada e exigente que sou (será a mineirice?) ainda me meti com uma profissão que favorece o contato com o que o que há de pior no ser humano, seja entre os colegas ou entre as histórias que acabamos assistindo diariamente. Resultado: em um quadro destes, o indivíduo começa, realmente, a crer que o mundo só tem fdp.

Foi triste, mas vivi assim durante anos: para onde quer que olhasse, estava lá um coisa horrorosa, pronto para dar o bote.

Desisti da melhor oportunidade profissional que tive justamente por causa disso. Rompi “amizades”, risquei alguns parentes do meu caderninho, cortei pela raiz possíveis roteiros amorosos... tudo para evitar os fdps.

Então aconteceu o lance cinematográfico: em um curto espaço de tempo, quase todos os meus amigos de verdade (que eram uma meia-dúzia de três ou quatro), estavam mortos. Restou-me apenas uma, para contar a história. Aos trinta e poucos, me vi em uma solidão tão absoluta e concreta, que adoeci de corpo e alma.

Realmente acredito que o pior da pobreza nada tenha a ver com dinheiro, porque este foi um momento de pobreza financeira e afetiva, e o que mais me doeu e assustou foi a consciência de estar só no mundo, este mundo que, para piorar tudo, só tinha fdps! Me senti o próprio Will Smith naquele filme de terror, “Eu sou a lenda”... sozinha em um mundo povoado por zumbis. Por sorte sou da vida, caso contrário teria pulado da ponte Rio-Niterói...

Então resolvi mudar meu foco. Os livros que lia, os filmes que via, os pensamentos que alimentava. Cortei as manchetes de jornal e a TV e, por isso, tive que buscar um outro tipo de jornalismo. Voltei para o consultório do analista, para encontrar alguma coisa boa dentro de mim mesma e tentar jogar fora o que não prestava. E, como tão bem aconselha o Frejat, deixei de passar a mão na cabeça de quem me sacaneava.

Já se passaram alguns anos, e vejo que os fdps continuam por aí. A diferença é que agora consigo ver que o mundo também tem muita gente boa, e que elas estão por toda parte: aqui mesmo, neste blog, volta e meia tenho boas surpresas.

O mundo está diferente, mas de fato mudou? Não. Quem mudou fui eu. E é aí que está o grande segredo de toda esta história.


Eu já não vivo mais assim!!!

sábado, 13 de agosto de 2011

Muitas oportunidades brotam de uma única perda

Nunca me esqueci da perplexidade da Paula Peres, minha amiga preferida na infância:

-- Mas como é que pode, ter tirado 2,5 na prova e estar assim, tão tranqüila?!

E eu, aos onze anos, dei de ombros, enquanto mandava brasa no pão-doce de canela e côco que comíamos todos os dias, na saída da escola.

No fundo, estava enganada, a Paula Peres, que não percebeu minha angústia pela nota baixa. Uma angústia que eu mesma rejeitava, por entender que não me ajudaria a desvendar os mistérios da matemática. Eu estava diante de um problema difícil, mas sabia que chorar pelo leite derramado não me ajudaria em nada.

Justamente por não ser capaz de aprender aquelas equações sozinha, e por passar pelo dissabor de uma nota tão baixa e um castigo sentenciado por meu pai, minha mãe me arranjou uma professora particular, a Ângela, que me ensinou o quanto os números podem ser divertidos. Resultado: aprendi de verdade e, por isso, passei a tirar dez nas provas. O que pareceu terrível, num primeiro momento, revelou-se oportunidade.

Mas a lição mais importante eu ponho em prática até hoje: diante de qualquer experiência mal-sucedida, vasculho todos os cantos da situação em busca dos ganhos... que sempre existem, mesmo que eu não consiga vê-los de imediato. Os ganhos estão ali, e quanto mais abrimos os olhos para a vastidão que pode ser a vida, maiores são as novas possibilidades, que brotam, como flores, de um único pé de perda.

O segredo está no fato de que as aparências enganam, e nem sempre a vida é o que parece. Nem sempre, por exemplo, uma perda é uma perda. Aquela mulher que não te ama e vai embora, não é uma perda. Aquele emprego que não te realiza e um dia vira um bilhete azul sobre a mesa, não é uma perda. Aquele amigo que trai sua confiança... aquele dinheiro que virou fumaça no divórcio litigioso e que por tanto tempo te aprisionou em um casamento infeliz... aquela promoção que não saiu e que dobraria seu salário, mas faria de você um escravo...

Note que a vida é muito mais do que podemos perceber, em um primeiro momento. É preciso cuidado com as deduções que fazemos e com as decisões que tomamos, porque a realidade é muito maior do que nossos olhos alcançam e nossas emoções nos permitem ver.

A verdade tem sempre muitos lados, a realidade tem muitos ângulos, a vida tem muitas possibilidades... e nós temos só dois olhos para ver e um coração para decifrar tudo isso.


Três Mundos, de M.C. Escher

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Para os céticos, as estrelas não têm pontas

Dia desses, vi esta frase aparentemente ingênua escrita em algum lugar:

“Acredite em Papai Noel”.

Gostei do conselho, porque tenho a impressão de que proliferam, mundo afora, os que duvidam de tudo. Os que não confiam em ninguém. Os que afirmam já não ter esperanças, os que rechaçam a Deus e ironizam a felicidade. Os que negam os milagres e se gabam de não acreditar em nada.

Pois conto que, noite dessas, vendo um documentário do Discovery com meu marido, soube que as estrelas não são o que eu pensava.

-- As estrelas não têm pontas?!

Imaginei o céu coberto por estrelas que não são estrelas, mas bolas. E, de um instante para o outro, o mundo ficou esquisito. Meu marido achou graça em tanta decepção, e riu mais ainda na noite seguinte, quando olhei para o céu, enquanto caminhávamos perto de casa, e contei-lhe como um desabafo:

-- Não estou nem aí para o que os cientistas dizem.

Não sou cética. Se acredito em Papai Noel, não vou acreditar nos cientistas? Também não sou adepta da teimosia-burra...

Mas que importância têm, certas verdades, diante da beleza do mundo? Quanto da maravilha do seu natal foi pelo ralo quando você descobriu que seu presente tinha saído de uma linha de montagem industrial e havia sido pago, num balcão de loja? Quanto da magia de um casamento iria para o brejo se os noivos soubessem que, no futuro, se divorciariam? Quanta alegria deixaríamos de sentir, se soubéssemos, de antemão, dos desgostos do por vir?

Eu não duvido de nada e tenho na varanda um vaso de esperança e outro de felicidade. E dali mesmo, da varanda, posso ver, todas as noites, que as estrelas têm pontas sim.

domingo, 7 de agosto de 2011

Quem sabe apertar os seus melhores botões?

Costumo dizer que o ser humano é uma caixinha de surpresas, e que de dentro dele pode sair qualquer coisa: as maiores maravilhas e os piores horrores.

E pelo menos para quem é mais um na multidão de pessoas comuns, daquelas que estão buscando a evolução, mas ainda padecem das fraquezas mundanas, esta questão tem muito a ver com quem está à volta. Em outras palavras, estou dizendo que muito do que sai de dentro da caixinha, vem pelas mãos de quem a circunda.

Cada pessoa tira de dentro de nós comportamentos e atitudes bem específicos. Há quem te estimule a querer ser melhor, já reparou? Mas há também quem te leve à exaustão, ao nervosismo, à violência.

Não, não estou dizendo que a reponsabilidade pelas suas atitudes está na mão dos outros. O que estou dizendo, é que os outros têm a capacidade de extrair de você as suas potencialidades, sejam elas boas ou ruins. Por isso, todo cuidado é pouco. Ou, melhor ainda, "diga-me com quem andas, e te direi quem és".

Por que será que você se sente bem ao lado de Fulano e, em contrapartida, muito mal ao lado de Beltrano? Porque Fulano sabe, sei lá como, puxar do seu coração aquele fio iluminado da positividade; seja por afinidade, por respeito ou porque ele tem mesmo o talento de estimular os demais para o bem.

Ao passo que Beltrano, ao contrário, se compraz em ferir e em subtrair... será por vaidade? Por desejo de dominação? Ou por simples crueldade mesmo? Não sei, e isso nem importa, mas o fato é que, por vezes, as pessoas também puxam, do seu coração, aquele fio negro que traz à tona o seu lado sombrio... por mais que você se esforce em ser uma pessoa de luz.

Uma outra boa metáfora para isso, é imaginar dezenas de botões em nosso espírito, botões que, quando apertados, revelam diferentes capacidades nossas...

A capacidade de ser alegre ou triste; egoísta ou generoso; sereno ou abalado ; aberto à vida ou fechado em si mesmo; compassivo ou agressivo; saudável ou doentio, a compreensivo ou intolerante, amoroso ou aguerrido ...

E como são puxados esses fios? Como são apertados esses botões?

O gatilho pode ser uma palavra, um tom de voz; um olhar, um gesto. A chave de tudo está na maneira como nos portamos com o outro, porque a convivência nada mais é que uma troca de intenções e energias, bem mais que de sentimentos. Você pode amar desesperadamente uma pessoa e, no entanto, apertar os botões errados simplesmente porque se diverte em vê-la reagir, ou porque tem preguiça para buscar os botõezinhos certos. Ou, em último caso, porque é obtuso o bastante para entender a importância disso tudo.

Ninguém vem com manual, eu sei. Os botões certos e errados, ou o fio de luz e o de sombra, estão todos ali, misturados no nosso peito. Talvez, então, o segredo da felicidade esteja em identificar quem está disposto a mexer com tudo isso sem provocar o caos dentro da gente.


Olha aí alguns dos meus!

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Se não fossem os desafios, que graça teria viver?

Foi pensando assim que eu, doceira de mão cheia (modéstia à parte) resolvi, pela milésima vez, investir na minha falta de talento para pratos salgados e pagar uma nota por um livro de culinária daqueles bem luxuosos, que prometem ótimos resultados. Da livraria, toquei para o supermercado e comprei todos aqueles ingredientes diferentes que a receita do risoto de alho poró pedia.

Em casa, ataquei de chef e mandei ver na receita, feliz da vida com o início desta minha nova fase, a de ótima cozinheira, do tipo que promove almoços em casa para os amigos e é reconhecida pelas maravilhas que só ela sabe fazer.

A mesa arrumada na varanda, o estômago roncando na barriga e eis que...


A comida ficou horrível!

Eu e meu marido bem que tentamos, insistimos, mas não deu. E o que fazer com a fome? Tentamos ignorá-la a princípio, mas menos de uma hora depois dos pratos já lavados, deixamos de fingir e voltamos à rotina de sempre, ou seja, fiquei olhando enquanto ele pilotava o fogão.


Nada como um marido que, além de tudo, também é bom cozinheiro!


E ainda lava os pratos!

Para não me sentir totalmente por baixo, resolvi cantar de “gala” e ataquei de cheesecake... já pensando no peixe pochê ao vinho branco que vou preparar no próximo sábado. E, no final das contas pensei: se não existissem os desafios, que graça teria viver?

terça-feira, 2 de agosto de 2011

A beleza está nos olhos de quem vê

Duas horas na sala de embarque e nada! Depois de um dia exaustivo, o atraso do avião era só o que me faltava! Além do cansaço, da fome e do desânimo, a impaciência na cara dos meus companheiros de espera deixavam tudo ainda pior. Próximo a mim, um homem por volta dos 70 anos, inconformado, se queixava com a mulher, que, acostumada, não lhe dava ouvidos e se distraía com as palavras cruzadas.

De repente, levei um susto: do outro lado da parede de vidro, muito, muito longe, a lua reinava com toda a sua força naquela noite azul royal. Era uma imensa bola cor de laranja, quase na linha do horizonte, iluminando o céu ao redor. Eu, que gosto da lua e sempre tenho os olhos nela, nunca a tinha visto com aquele esplendor.

Foi como um passe de mágica: tudo sumiu. As vozes, as pessoas, meu cansaço. E meu primeiro pensamento foi que, se não fosse o atraso do voo, eu não teria ganho aquele presente dos céus.

Não me contive. Sem desviar os olhos dela, toquei de leve o braço do meu colega de espera __o tal senhor por volta dos 70__ e lhe disse, enquanto apontava para o horizonte:

- Preciso mostrar isso a alguém.

Não fosse a vida uma caixinha de surpresas, ele não teria me dado esta resposta:

- É, está horrível!

Outro susto: como é que alguém poderia achar horrível aquele quadro perfeito que nem Van Gogh, em seus melhores dias, seria capaz de reproduzir? E no minuto seguinte entendi que o pobre homem não tinha olhos para o extraordinário logo ali à nossa frente; era incapaz de ver a beleza em meio ao caos... ele, precisamente, só exergava o caos.

Deixei-me levar pela sensação mágica de estar só naquela sala de embarque e acabei voltando no tempo... ao dia em que, em plena Cinelândia às três da tarde, num calor de rachar, enquanto eu esperava uma carona na escadaria do Teatro Municipal, olhei para os lados do Museu de Belas Artes e dei de cara com a figura imensa de uma índia que, imediatamente, me transportou ao Brasil selvagem dos idos de 1500, talvez.

A Cinelândia sumiu. Virou floresta tropical... e eu ali, diante de uma índia.

Naquela tarde de verão carioca, a ampliação do quadro, pendurada na parede do Museu, anunciando a reforma do prédio, parecia invisível ao resto do povo, que passava apressado sem ver a índia ou a floresta, enquanto eu sentia a umidade tropical daquela vegetação e quase ouvia as aves livres no céu... em plena Avenida Rio Branco parecia que, a qualquer momento, aquela moça estática desapareceria entre as árvores!

Lá se vão alguns anos, e não esqueço este momento mágico.

Quem me ensinou a olhar o mundo foi a minha prima, Maria Alice. Eu tinha nove anos e descia a ladeira da cidadezinha de Minas, onde morávamos, quando vi a Maria Alice, lata de leite na mão, parada embaixo de uma árvore, olhando pra cima.

Parei ao lado dela e olhei também: nem sinal de avião ou de disco voador. De repente, ela disse a frase que mudou tudo.

- Olha como são lindas as folhas desta árvore, e o céu lá atrás, fazendo fundo pra elas.

Uma janela se abriu nos meus olhos, e a vida ficou muito mais bonita a partir dali.