quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Despedida


Estou cansado, e isso é tudo.

Não sai de mim nem uma só palavra...

Fiz-me dois olhos, pesados como hera

a me fartar de dores,

e sigo mudo.

Võo profundo...

rasante sobre o ar

impera

e, como ave, deixo-me às flores

último abraço a me restar do mundo.

(Fernanda Dannemann)



terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Filho deveria ser proibido de morrer

Eu tinha 17 anos e caminhava entre as sepulturas do pequeno cemitério lá na cidadezinha de Minas: tinha ido visitar o jazigo dos avós que não conheci e dos tios que perdi muito cedo: gostava de ler seus nomes nas plaquinhas presas aos túmulos e de passar os dedos sobre as letras.

Entre as sepulturas, vi um homem sentado no chão. Chorava com uma tristeza sem fundo, com os olhos transbordantes de uma desesperança implacável. Era tanta solidão e desespero que me sentei ali com ele e compartilhamos um maço de cigarros que eu fumava escondido, enquanto ele soluçava e falava do Gilmar.

Seu nome era Paulinho Sinhá. Gilmar era o filho mais novo, um menino bonito que teve a infelicidade de ser homossexual no interior de Minas, há quase trinta anos: sem qualquer possibilidade de compreensão ou respeito pelos mineiros de então,lembro que o Gilmar se escondia numa falsa coragem para encarar o escárnio do povo. Imagino o quanto devem ter sofrido os dois, pai e filho, devido à natureza tão distinta de ambos... a mesma natureza que, através de um ataque do coração, levou para sempre o Gilmar.

Anos depois, ouvi sem querer o meu pai dizer a um amigo que havia sim, sofrido muitos revezes e perdas na vida, mas que não há como sair vivo de um cemitério se o filho ficou lá. E eu pensei em seu coração, cuja metade esquerda havia literalmente necrosado dentro do peito, e em seu rosto que envelheceu tantos anos em um ano só.

Lembro da tia Leléia e de uma prima distante lá em Minas, a Loló, que perderam seus filhos jovens e carregaram para sempre, como tatuagem sobre o rosto, a sombra que a morte deixou para trás.

Penso nas famílias inteiras que estão órfãs de alguém, lá no Rio Grande do Sul... órfãs de um filho, um sobrinho, um irmão, um neto, um amigo. Quem foi que disse que a gente só fica órfão de pai e mãe?  E aí me lembro da noite em que vi, estendido na rua Barata Ribeiro, o corpo de um rapaz muito jovem, de cabelos escuros e lisos, e a motocicleta arrebentada mais adiante. A polícia afastava os curiosos e eu, através da janela do ônibus, podia ver, ali no chão, junto do corpo e do sangue, o futuro sem futuro da mãe dele. Pensei que, talvez, aquele exato momento fosse o último em que ela teria sossego para ver uma novela, para conversar com uma vizinha, para lavar uma louça ou reclamar que o rapaz agora andava de moto por aí. Pensei que o telefone ia tocar na mesinha da sala e ela teria, a partir dali, uma espada para sempre fincada no coração. Se é mesmo verdade que o sofrimento enobrece a alma, é assim que qualquer mãe neste mundo torna-se Nossa Senhora das Dores.

Filho deveria ser proibido de morrer.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

No Brasil, horror alheio é bobagem

Neste momento de horror, de choque, de consternação e de luto que o Brasil inteiro atravessa pelo incêndio que matou tanta gente na boate de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, chefes de estado se solidarizam, assim como nossos ministros, governadores, secretários, deputados, senadores... todas as autoridades se horrorizam e se manifestam através de notas de pesar e solidariedade.

Ao repórter de "O Globo", o coronel da Brigada Militar, Sergio Roberto de Abreu, afirma que o fato de “o plano de prevenção de combate a incêndio estar vencido desde o ano passado pode não ter sido determinante para a tragédia”. Segundo ele, faltava ainda a vistoria final, mas “a casa vinha de outro alvará e não teria problema, porque a fiscalização se dá em alguns equipamentos, extintores, iluminação de saída de emergência etc”. Já os demais especialistas dizem, aos quatro ventos, que o incêndio aconteceu principalmente por falhas no plano de emergência da boate e pela desobediência a regras básicas de planejamento de emergência e evacuação.
Se o extintor não funcionou, se não havia saídas de emergência, se dentro da boate tudo era preto e não havia luz... como é que só faltava uma vistoria final? Como é que não haveria problema?
Então o tenente-coronel dos Bombeiros do Rio lembra que uma tragédia como esta é exemplar para que a fiscalização seja intensificada e para que uma série de exigências seja revista.
Mas por que é que no Brasil é preciso que a catástrofe aconteça para que as leis sejam revistas? E olha, não sei se é caso de intensificar a fiscalização ou, simplesmente, de fiscalizar... 
Seria muito bom se as autoridades enlutadas e solidárias entendessem que a tragédia já aconteceu e se mobilizassem para mudar a realidade do país inteiro, onde, segundo o presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de São Paulo, Antônio Ramalho, mais de 90% das casas noturnas funcionam sem alvará e sem respeitar as normas de segurança.
Porque a nossa história, pontuada por tragédias inesquecíveis apenas para as famílias dos mortos, nos mostra que a impunidade e o nefasto “jeitinho brasileiro” só podem mesmo é repetir os fatos.  Nem é preciso buscar incêndios, desabamentos, inundações e acidentes nos quais tantas pessoas foram mortas pelo descaso, e muitas outras passaram o resto da vida torturadas pela falta de justiça.
Basta pensar que, na Região Serrana do Rio, as vítimas da chuva de janeiro de 2011 ainda sentem o cheiro dos cadáveres sob a lama que secou, ainda vivem em condições de risco, ainda sofrem de pânico a cada chuva que cai.
É triste, é uma vergonha dizer isso... mas, no Brasil, horror alheio é bobagem. Mais ainda às vésperas do Carnaval, mesma época, inclusive, da tragédia em Friburgo e Teresópolis.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Campanha: ajude o Paes a consertar o Joá!

Os moradores da Barra da Tijuca ficaram assustados quando a Coppe disse que o Elevado do Joá está perigando, e que o ideal mesmo seria derrubar o velho e construir um novo...

O susto piorou quando o prefeito Eduardo Paes disse que "não, sinto muito", e mandou o povo diminuir a marcha quando fosse passar pelo minhocão que liga a Barra a São Conrado (e ao resto do mundo inteiro, aliás...).

Não sei se é caso de indignação ou de falta de educação dos motoristas, mas o fato é que eu, que passo pelo Joá com relativa frequência, ainda não vi ninguém acatar a decisão do prefeito e atravessar o elevado a 60 por hora. A moda não pegou.

Só eu vou a 60, e ainda tenho que aturar os faróis piscando na minha traseira, os xingamentos e as buzinadas alheias: pelo visto, ninguém acreditou que o elevado está cai-não-cai... ou ninguém se importa que ele venha mesmo a cair. Sabe aquela história de otimismo excessivo e de achar que as tragédias só acontecem com os outros? Pois é...

Concordo com a presidente da CET-Rio, Claudia Secin, que por ali passa todos os dias e disse, em entrevista publicada recentemente, que é um absurdo que a adoção dos radares seja necessária para botar um freio na desobediência dos motoristas. A CET-Rio espera uma média de 250 multas por dia depois da instalação dos radares, quando o ideal, diante dos riscos, seria que ninguém ultrapassasse o limite de velocidade. Se considerarmos o valor de R$ 127,69 por multa, no fim do mês somente estas 250 multas diárias somarão R$ 1 milhão!

Assim sendo, minha sugestão para o caso é que o prefeito instale logo os tais radares e coloque também um placar gigante com os dizeres "A PREFEITURA AGRADECE, JÁ ARRECADAMOS R$... EM MULTAS", e converta todo o dinheiro na reforma do elevado velho e na construção do novo. Taí uma boa maneira de usar de forma construtiva a falta de educação (e de consciência) do carioca!

                                               Eu vou a 60 por hora e fico para trás...

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A nova síndrome: Facebook


-- Faz um desenho bonito pra gente botar no Face!

Bastou a mãe falar a palavrinha mágica, “Face”, e a menina de mais ou menos três anos parou de tentar chamar a atenção do restaurante inteiro e se concentrou nas folhas de papel e nos lápis coloridos que o garçon colocou à sua frente, na mesa. Parou até de tomar refrigerante!
A garota ainda nem se livrou direito das fraldas, mas já sabe que pode chamar a atenção e ser "curtida" por um bando de “amigos” (mesmo que de mentirinha) no computador. E toca a caprichar no desenho enquanto a gente pode, finalmente, almoçar e conversar em paz, porque a fofa calou a matraca.
Mas logo ela interrompe o trabalho e faz uma pose com sorriso mais falso que as irmãs da Gata Borralheira, e tudo porque a mãe resolve fotografar o grupo todo, e pra quê? Pra botar no Face, marrelógico!

A tal mãe e a tal filha estão entre os 65 milhões de pessoas que fazem do Brasil o segundo país no ranking do Facebook, perdendo apenas para os americanos, segundo as últimas pesquisas: um em cada três brasileiros estão conectados ali. Mas é nos EUA mesmo que uma certa saturação já vem dando sinais de vida, e as novas adesões vêm caindo.
Enquanto isso, na Alemanha, décimo lugar na lista, os pesquisadores concluem que a saturação pode vir a ser mesmo uma realidade. É que, ao menos em seu país, a rede social mais popular do planeta é considerada “estressante” por causa da autopromoção social, financeira e estética que vem dando o tom das relações de “amizade” e “curtição”. O povo, tadinho, diante de tanta felicidade alheia nas telas do Face, anda se sentindo insatisfeito com a própria vida e intimidade! Ai, que dó!
Segundo os pesquisadores, sentimentos como raiva, inveja, frustração e infelicidade vêm tirando a paz dos alemães... note bem que estamos falando de um dos povos mais ricos do planeta... imagine então como anda a coisa pelo Terceiro Mundo, embora nesta parte do globo o Face continue crescendo. Talvez o povo dos países mais pobres não tenha ainda acordado para o lado perverso de uma convivência baseada nas aparências. Será que é por que somos emergentes deslumbrados?
Esta ostentação doentia me faz lembrar daquelas célebres palavras de Winston Churchill, quando ele se referiu ao nazismo: “você pode enganar algumas pessoas o tempo todo ou todas as pessoas durante algum tempo, mas não pode enganar todas as pessoas o tempo todo”. Parece que entre o um bilhão de seguidores do Face, alguns já estão ficando cansados de competir ininterruptamente com seus "amigos": todo mundo já sacou que é tudo teatrinho!
Ato contínuo, lembro do Eduardo Dusek, que prófético como Andy Warhol e seus tão propagados "15 minutos de fama", há trinta anos falou sobre esta necessidade de ser o "tal" e suas consequências funestas: "isso é que dá... cê querer frequentar!".



quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

"Na próxima encarnação, quero nascer homem!"

Sou admiradora de Freud, mas não gosto nada da teoria da Inveja do Pênis. Houve época em que cheguei a acreditar que a tal inveja fosse metafórica e o pênis simbolizasse a liberdade, a autonomia, as possibilidades, a capacidade de ser dono do próprio nariz. Aí eu entendia esta conversa e até concordava com ela, porque não faz muito tempo que as mulheres não podiam nada, e em muitos lugares do mundo, aliás, continuam não podendo.

Depois descobri que não, o Freud acreditava que as mulheres invejam o pênis mesmo... em outras palavras, sofrem porque não o têm balançando ali entre as pernas. Tive que discordar, embora saiba que as exceções existem.
Já ouvi de algumas mulheres a frase terrível:
-- Na próxima encarnação, quero nascer homem!
Até entendo que alguma mulher diga isto num momento de revolta contra uma situação de machismo, mas a gente precisa ter cuidado com esse papo de igualdade. Se não, ser mulher vai virar vergonha nacional. Olha a cena que vi no domingo, na quadra de tênis:

Rapaz está jogando e vê a amiga que chega, toda paramentada.

-- Fulana! Comprou raquete nova! É de mulher?

E ela, com cara de ofendida:

-- Nããããão... esta aqui só tem o cabo um pouco mais fino, mas é de homem! Você acha que eu vou comprar raquetinha de mulher?!
 
Ser mulher não é fácil, e muito menos buscar a igualdade. Veja você que ontem mesmo assisti um programa na TV sobre uma moça nascida na Jordânia, num acampamento paupérrimo, e que conseguiu ser enviada à Índia para um curso de seis meses, no qual aprendeu como montar uma pequena empresa instaladora de lâmpadas em residências a partir de pequenos painéis solares presos ao telhado. Virou personalidade nos programas de TV quando voltou ao seu país, teve que enfrentar os ciúmes do marido, que se sentiu ameaçado em seu poder de macho, teve que batalhar para convencer as outras mulheres a aprender um trabalho remunerado e, finalmente, sofreu por não ser a escolhida, entre familiares e vizinhos colaboradores, para ser a presidente da empresa que ela mesma estava fundando. Perdeu o cargo para um homem que não tinha feito o curso e não entendia nada do negócio... mas era homem e isso bastava.
Ao final do programa, com luz em casa e na vizinhança, a moça sorria, feliz, por sentir que conseguiu driblar todos os limites que uma cultura machista lhe impôs a vida inteira e pôde fazer alguma coisa importante da sua vida.
Enquanto isso, aqui no Brasil, vejo no jornal que um delegado perdeu seu cargo porque disse, na Internet, que 13 mulheres que passaram no concurso para a polícia não têm perfil para o cargo. Foi demitido por uma mulher e perdeu o cargo para outra.  
Nós, mulheres livres do Ocidente, que gozamos de uma liberdade impensável para a moça da Jordânia, precisamos aprender a conviver com a crítica, se quisermos verdadeira igualdade de condições com os homens... e, principalmente, se estivermos na liderança. Ou estaremos perpetuando a histórica condição feminina de vítima das circunstâncias, ou o exagero de autoridade que tantas vezes padecemos no mundo masculino, e que odiamos tanto.


                                        Que a luz da igualdade brilhe para todos nós!


terça-feira, 22 de janeiro de 2013

A culpa foi da mantegueira


-- Mas por que é que você saiu do seu último emprego?

-- A "mulé" era muito chata.
Quase ri diante de tanta honestidade... bem que o porteiro, que foi quem me trouxe a candidata à (quase já eterna) vaga de diarista, me afiançou:

-- Pode contratar, dona Fernanda, a Sirlene é minha amiga há muitos anos, gente finíssima: honesta e limpinha.
O "limpinha" entrou arranhando meu ouvido,  e vi que realmente meu nível de exigência já correu léguas neste condomínio. Parei de pensar e voltei à entrevista.

-- E então, Sirlene, a “mulé” era chata por quê?

-- Tinha que fazer a comida com água “filtada”! Onde já se viu isso, fazer comida com água “filtada”?!

-- Mas você é boa de faxina? Aqui em casa não precisa lavar o banheiro com água “filtada” não, mas eu sou exigente com a limpeza...
Vi que ela ensaiou direitinho com o porteiro:

-- Sou ótima! Também sou exigente com limpeza, adooooooro limpar a casa! Sou limpinha, a senhora não tá vendo?

-- Tôôô... mas então a gente fica assim: você vem amanhã pra fazer uma experiência e ver se a gente dá certo. Se você gosta de mim,  se eu gosto do seu trabalho... ok?

No dia seguinte ela chegou cedo e cheia de energia pra faxinar, mas foi logo cedo mesmo que o nosso bolo desandou. Foi só ela lavar a louça do café e separar, no cantinho da pia, a mantegueira vazia.

-- Sirlene, por favor, lava aí a mantegueira...

-- A mantegueira?! Mas não vai botar manteiga de novo? Então lavar pra quê?

Acho que foi culpa da TPM, ou então é porque eu ando meio cansada desse negócio de diarista... e respondi de um jeito meio atravessado, ainda que calmíssima:

-- Pelo mesmo motivo que a gente lava a privada. A gente lava não é pra usar de novo? Ou não precisa lavar?

Taí: Sirlene mostrou sutileza... nunca fui chamada de chata com tanta educação:

-- Lavar mantegueira... só falta a senhora dizer que tem que ser com água “filtada”!

                                             Olha ela aí!!!! E limpinha!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Diariamente


Por trás da casa vejo a lua, sempre nova,

E em minhas costas pesa o tempo que se vai...

Tão sem destino.



Tomo um calmante, pra esquecer que tenho medo,

Pra adormecer a vértebra, que se contrai



A solidão me toca a pele, com mil dedos,

E sobre a espinha modela esta corcova:



É sobre mim que o sol se põe.

 (Fernanda Dannemann)




domingo, 20 de janeiro de 2013

"Django Livre", o Mutatis Mutandis que nós somos

"Django Livre" é um filme sobre a mutação, aquela pela qual todos nós passamos quando temos a oportunidade de transcender nossa condição atual e nos libertarmos do rótulo que nos foi posto em algum momento; ou da crença que nos limita a nosso próprio respeito, mas que alguém incutiu em nossa mente;  ou do lugar ao qual não pertencemos, e onde estamos, porque foi até ali que a vida nos conduziu... sim, é de transcendência que Tarantino está falando desta vez.

Gosto do jeito do Tarantino e não perco um filme dele por nada! O tragicômico, o brega, o ridículo, o acaso, os heróis humanos e a violência que não agride são os ingredientes que sua câmera captam com maestria e sem arrogância, e nos fazem rir, tomar um susto, lamentar a morte de algum personagem e, ao fim de tudo isso, sair do cinema com vontade de ver o próximo filme deste diretor tão singular, que escolhe a dedo seus atores e sabe tirar deles o que há de mais humano em seus papéis. A interpretação de Samuel L. Jackson está simplesmente magistral, e Christoph Waltz, o nazistão doido de "Bastardos Inglórios", reaparece completamente antônimo a tudo o que possa cheirar a dominação.
Django Livre é um filme que fala também da amizade que nasce repentina, inesperada e eterna entre indivíduos saídos de galáxias muito distantes. No fim do século 19, antes mesmo da Guerra Civil americana, um alemão de alma libertária identifica-se profundamente com Django, um escravo que revela-se a reencarnação negra do herói mítico Siegfried. A mitologia nórdica, quem diria, foi parar no Mississipi!  
No final, o escravo amedrontado e fragilizado do começo do filme se transforma em um negão valente, cheio de estilo e autoestima, exatamente como aconteceu na vida real com os negros dos Estados Unidos, no decorrer do tempo: o negro americano tem orgulho de ser quem é porque, mesmo pobre, explorado ou vítima de preconceito racial, deixou de SENTIR-SE escravo, conheceu sua própria força e soube dar valor à sua origem, exatamente como o Django de Tarantino...

Na vida real, como ninguém consegue regredir, rebobinar o tempo e voltar a ser aquela pessoa de antes de sua transformação pessoal e libertadora, o espectador, seja ele branco, amarelo, vermelho ou negro, e de qualquer época, ou de qualquer lugar do mundo, se identifica com o Siegfried do filme.
"Django Livre" fala de todos aqueles que, em algum momento da vida, quebram algemas, transcendem sua condição, libertam-se, renascem, mudam o curso de sua história e, finalmente, tornam-se incapazes de aceitar o cárcere, qualquer que seja.

Não há poder, nem grade, nem ferro, não há nada que nos possa reconduzir à pequenez de vida ou de espírito, depois que conhecemos nossa força e alegria, e nem à ignorância, depois que enxergamos a luz. E é por isso, só por isso, que evoluímos até aqui.

 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Plágio: a ferida incurável da mediocridade

O leitor escreve indignado com o plágio do livro de Moacyr Scliar, "Max e os felinos", pelo canadense Yann Martel, que admite ter se inpirado na história do nosso escritor gaúcho sobre o menino que sofre naufráugio e vai parar em um bote com um jaguar: foi daí que nasceu "A vida de Pi", o garoto indiano que também sofre naufrágio e vai parar em um bote com um tigre, e que depois foi parar nas telas, no filme "As Aventuras de Pi", de Ang Lee.

Eu não sabia do lance, fiquei sabendo dias atrás, ao ler uma crônica do Artur Xexéo em "O Globo".

Já vi de perto algumas histórias de plágio, eu mesma já tive ideias roubadas: trabalhei anos como freelancer e cansei de ver as pautas que oferecia a jornais e revistas publicadas por outras pessoas... mundinho podre este da imprensa. E já tive o dissabor de ver ideias de filmes, livros  e programas de TV idealizados por amigos e roubados por gente sem criatividade ou escrúpulos.

Mas um assunto tão delicado como este pode render também injustiças. E por isso mesmo acho que foi uma sorte muito grande o Lauro César Muniz ter tido a ideia de escrever a novela "O Casarão" nove anos antes de Gabriel García Márquez lançar o belíssimo romance "O Amor nos Tempos do Cólera". Que eu saiba, ninguém jamais cogitou a possibilidade de o escritor colombiano ter plagiado o novelista brasileiro, inclusive eu também não acredito nisso, é bom deixar claro: García Márquez é um escritor genial e está entre os meus preferidos... mas realmente acredito que, se o livro tivesse saído antes, Lauro Cèsar Muniz carregaria para o resto da vida a pecha de plagiador. É que o brasileiro não tem autoestima, não dá valor a si mesmo e tende a bancar o inferior frente ao sucesso que vem de fora. "O Casarão" foi uma novela como já não se faz mais... foi um poema que até hoje comove as testemunhas... e olha que eu era criança, mas nunca me esqueci. E volto a dizer: se tivesse sido feita depois do livro, seria criticada e considerada menor... uma reles cópia mal-feita.

De qualquer forma, plágio é uma coisa tão baixa e nojenta que realmente creio que o próprio plagiador é quem mais sofre: a consciência de que o sucesso veio por conta de uma ideia roubada deve causar uma dor insuportável no orgulho e na vaidade! Enquanto isso, aquele que foi roubado, ainda que sofra por sentir-se vilipendiado, sabe-se capaz de repetir o feito; sabe que da nascente de onde veio aquilo que lhe foi tirado, outras criações já vieram antes e continuarão a vir, a menos que ele se feche em copas no ódio, no ressentimento, na indignação. Moacyr Scliar escolheu não levar o caso adiante: aceitou o pedido de desculpas de Martel e o agradecimento que o canadense lhe fez, no prefácio de seu livro premiado, pela "inspiração" que disse ter tido a partir do livro de "Max e os felinos". O plágio, quem diria... virou inspiração. Não sei o que foi que Martel pensou quando decidiu inspirar-se na história, mas considerando que muitos estrangeiros da América do Norte pensem que a capital do Brasil seja Buenos Aires, talvez o canadense tenha pensado que "inspirar-se" em um escritor brasileiro não fosse acabar em notícia de jornal.

O filme "As Palavras", com Bradley Cooper e Jeremy Irons, trata exatamente de tudo isso; do quanto a mediocridade fere a consciência de um ladrão de ideias. O plagiador pode ganhar dinheiro, fama, ter as portas abertas diante de si, a luz dos holofotes... e ainda que o mundo inteiro banque a mentira e lhe puxe o saco, ele sabe, ele não se esquece jamais, ele padece o resto da vida desta ferida que é a falta de talento... uma chaga incurável que, apesar de oculta pelo roubo, cheira mal e o delata a si mesmo, ininterruptamente, pelo resto da vida. É a dor da mediocridade.


Leia também:

Náufrago no oceano de si mesmo

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Uma ovelha pra chamar de sua

Esta é a segunda vez que me acontece de adorar uma história e ainda por cima cair no choro no final, depois de ter ido parar ali naquela sala de cinema por total falta de opção. Não levo a menor fé em críticos de cinema, e geralmente não leio nada sobre o que está em cartaz. Dou uma olhada nas fotos de divulgação, vejo os atores... e decido.

Foi assim que, anos atrás, fui ver “17 Anos”, uma produção cuja origem não me lembro: chinesa, coreana, sei lá... e que contava a história trágica de um homem e uma mulher que se casam, cada qual levando uma filha para a vida conjugal. As meninas têm a mesma idade e não se gostam; são diametralmente opostas em tudo... e uma acaba responsável pela morte da outra. Depois de 17 anos presa, ela volta para passar a noite de natal em casa, e se reencontrar com os pais. E acontece o show de interpretação e de emoções tão humanas. Um filme sobre as diferenças, o perdão, a culpa e o amor. Lembro que as luzes se acenderam, o povo ia saindo da sala e eu não conseguia parar de soluçar, sentada cobrindo o rosto com as mãos, enquanto o Migliaccio, sentado ao meu lado, fazia cara de paisagem e tentava fingir que não me conhecia.

Bom... contei o “17 anos”, mas o filme que ontem me fez chorar foi “Paris Manhattan”, uma comédia-romântica deliciosa e que reserva um final surpreendente. A atriz é cativante e bonita, mas o ator é um cara feiozão, meio acima do peso, totalmente fora do que se espera para o “mocinho” do filme... e é aí que está toda a graça da coisa, porque na vida real também não é assim que acontece?

Quem não se lembra da célebre cena de Gene Wilder apaixonado por uma ovelha em “Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar”? Pois é... a ovelha! Pode ser que eu não tenha entendido nada de nada, mas sempre achei que a tal ovelha era nada mais que uma metáfora (óóóóótima) pra definir aquela pessoa que está longe dos nossos ideais românticos ou práticos para a vida em comum... mas que, sei lá por quais mistérios da vida, é a única que pode nos fazer realmente felizes!

Você, por exemplo: pode ter cismado com a figura idealizada de alguém que seja assim ou assado... que tenha cabelos curtos e negros como a asa da graúna...  e alta estatura, e pescoço looooongo como uma girafa... e uma voz de rouxinol... e a sutileza e o charme de um tigre... e a superioridade do rei da selva... mas então... eis que quem te aparece, e te faz rir, e te faz gostar da vida, e te faz transar como se tivesse 18 anos... é aquela ovelha fofa, cabeluda, redondinha e que te acorda cedinho, todos os dias, fazendo “bbbbbéééééééé” !!!!

Paris Manhattan é um filme comum por isso mesmo: ele fala desta procura pelo amor idealizado que, tantas vezes, faz a gente deixar passar o amor perfeito... aquela ovelhona meio esquisita, mas que é capaz de nos dar algo que ninguém mais consegue dar... e que tantas vezes, só por não se encaixar no molde da nossa vaidade, passa em brancas nuvens por nossos olhos, que procuram um bicho mais bonito ou elegante.

Feliz de quem acorda a tempo... de ter uma ovelha bem singular pra chamar de sua.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O segredo do bagaço da laranja


Sorveteria em Ipanema. Cinco da tarde. A enfermeira estacionou a cadeira de rodas ali na entrada.

-- Tem manga, tangerina, limão e abacaxi.

O homem, mais ou menos 80 anos, sussurrou alguma coisa: manga.

Ela estava no balcão quando, na calçada, a moça fez festa para o senhor na cadeira de rodas.

-- Seu Fulaaaaaano! Sou a Beltrana! Filha do Sicrano! Lembra de mim?

Não, o homem não lembrava, mas tentou desesperadamente, eu vi, disfarçar a falta de memória. Sorriu nervoso, com ares de quem queria sair correndo dali.

A moça percebeu, mas era tarde: sua mãe, fragilzinha pela idade, já lutava para sair de trás dela e se aproximar para cumprimentar o homem. Chegou perto dele toda sorridente, feliz pelo encontro e tocou seu ombro, em sinal de uma velha amizade. Murmurou também algumas palavras.

O homem sorria sem-jeito, nervoso, tentava disfarçar sua condição. E enquanto ali, naqueles segundos que voavam, a tal senhora percebia a realidade dos fatos e a impossibilidade de uma conversa (mesmo que rápida) para falar dos bons tempos do passado, outra enfermeira entrava na cena, empurrando uma segunda cadeira de rodas, onde um senhor muito envelhecido e tortinho  já sorria.

Postas lado a lado, as cadeiras de rodas aproximaram os velhos amigos, e o que chegava vinha visivelmente contente pelo encontro inesperado em uma calçada de Ipanema. Mas o outro continuava o mesmo, desconfortável com a situação e buscando a enfermeira com os olhos, num pedido mudo de socorro.

O que vinha balbuciou um cumprimento, tocou de leve o joelho do primeiro e rapidamente entendeu tudo. Vi quando o sorriso murchou em seu rosto, como uma flor de decepção. Do meu posto de observadora, senti uma tristeza repentina.

Tudo acontecia muito rápido, mas devagar o bastante para que a força brutal do tempo sobre a vida se mostrasse, completamente nua, a quem quisesse ver. O tempo passa, o tempo nos tritura. O tempo nos devora até o bagaço, não tem jeito.

A moça se despediu do homem, fingindo alegria pelo encontro, e tratou de rapidamente tirar os pais dali. O sorvete já escorria pela minha mão, esquecido, enquanto eu mantinha os olhos na cadeira de rodas do pai, se afastando; na silhueta encurvada da mãe, tão magrinha e de braços dados com a moça. Pensei nos meus pais, que hoje vivem tão longe, sei lá em que planeta estão, e em sua força ainda jovem, que um dia simplesmente faltou. Pensei na minha amiga Marina, aos 87 anos tão jovem por dentro, e já cansada da luta diária com o calvário do corpo.

“Meu corpo virou meu calvário”, me disse minha irmã, já no fim, e eu me escondi no silêncio.

A mulher desconhecida que tomava um sorvete ao meu lado tocou-me o braço, tirando-me de dentro daquele redemoinho de pensamentos, e disse com a voz monocórdia:

-- Envelhecer é uma tristeza. Ficar doente é uma merda.

Minha irmã entrou de novo na situação, trazida pela lembrança do dia em que, já despedindo-se da vida, me disse aquelas palavras:

-- Fernanda, felicidade é subir a rua de casa com um pãozinho quente embaixo do braço, pra comer com um café com leite e bastante manteiga... isto é que é a felicidade: poder tomar um café com pão na cozinha de casa... felicidade é lavar uma roupa branca no tanque, deixar a água cair até que a espuma do sabão despareça, e a água fique bem clarinha... ai, se eu pudesse agora lavar o chão da cozinha! 

Olhei o sorvete escorrendo em minha mão, olhei a tarde, meu reflexo no espelho em frente... pensei que meu marido me esperava a duas quadras dali, pra ir pra casa... e tive a certeza, mais uma vez, de que felicidade é uma laranja que tem que ser devorada até o bagaço, enquanto ainda a temos entre as mãos.



terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Alforria


Já devorei o sal

Do ressentir, do odiar,

Do alvejar por ira os meus cabelos,

Do mal-dormir, pelo pesar dos olhos,

Do deglutir na bílis o agravo.

Deixei passar o tempo

Amarelei ao sol

E repentina, vi a mágoa envelhecida,

Sem apetite para a nódoa do rancor;

Vinha comigo por costume pela vida,

Como canela e cravo.

E ao vê-la frágil, velha, imperiosa,

Posta aos meus pés, na tentativa no labor,

Vi-me liberta,

Do grilhão, dorida:

E daquele que odiei,

Uma saudade em flor.

(Fernanda Dannemann)



domingo, 13 de janeiro de 2013

A dieta e o "Delírium Fomens"

Nada melhor que uma dor de barriga monumental pra ver cair o ponteiro da balança... e a gente logo desiste das juras mais apaixonadas a respeito de uma lipoaspiração. Sim, leitor fiel... entre os planos para 2013 a lipo já não consta... e eu, feliz da vida, já repenso o que fazer nas férias. Ô felicidade que é pensar em viajar... e caber na velha calça jeans... e se olhar no espelho e se reconhecer... e já não ser chamada de barriguda pelo ex-marido e, muito menos, pelo marido atual!

Pois bem, minha receita para conquistar o corpinho ideal é simples: coma dois cachorros-quentes estragados, padeça horrores no banheiro de casa, corra para a Emergência mais próxima e passe as três semanas seguintes sem poder nem sentir cheiro de comida... e comendo só o necessário para não desmaiar, o que significa chá de camomila, biscoito água e sal e, de sobremesa, umas bolachinhas de maizena com geléia de goiaba.

Depois, pense como o meu marido me ensinou: 
"Agora que emagreci sem fazer lipo... e que não precisei gastar os tubos do dinheiro para pagar o cirurgião, o hospital e o anestesista... e que não precisei dormir sentada durante uma semana... nem usar cinta durante três meses... nem ficar toda roxa e sentir que deitei no chão e deixei uma manada de elefantes passar correndo em cima de mim... e não precisei pagar diarista pra cuidar da casa e me levar sopinha de legumes na cama... e não precisei fazer sei lá quantas sessões de drenagem linfática... e não precisei voltar ao cirurgião pra fazer acompanhamento... bem... agora que eu já emagreci sem precisar de nada disso..."

Interrompo o raciocínio dele para dizer, feliz e em alto e bom som:

-- Vou comer uma feijoada pra comemoraaaaaar!!!!!!!!!!!!!!

Mas eis que ele, para estragar a felicidade, mais uma vez entra numas de bancar a minha consciência e vem dizer que não! Que o pior de tudo vem sempre  no final, e que agora tenho que fazer a parte mais difícil, que é mudar os hábitos alimentares se quiser mesmo manter o resultado da lipo (que eu não fiz).

Feijoada? Omelete? Torresminho? Só se for pra botar como nome de cachorro. Aliás, que tal um vira-latas chamado Arroz a Piamontese? Já tenho um peixinho amarelo batizado Porção de Batata Frita. 

O problema maior de quem faz dieta é o seguinte: ver comida em tudo quanto é lugar. Para se ter uma ideia, eu que agora vivo com fome, até quando vou dormir preciso dar um jeito de pensar em outra coisa. É que ali, no meio dos lençóis, tem sempre aquele marido muito foooooofo.... muito braaaaaaanco... muito maciiiiio... e cheio de gordurinhas... e que por todas estas qualidades, sempre me lembra um delicioso leitão a pururuca! Ai, que fooooome!





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Um vômito vale mais que mil palavras

sábado, 12 de janeiro de 2013

Oratória


O meu dizer não tem pelúcia

É todo dolo

E nas papilas só o fel deita o falar

Pela amargura que trago presa aos dentes.


Dom da palavra, maior mal do ser humano

Se passarinho eu fosse, ia cantar.

 (Fernanda Dannemann)



quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Entrevista: Marina Paiva

"A verdadeira riqueza que a gente tem é a vida"

Dona Marina é uma vencedora: chegou aos 87 anos muito bem vividos, coisa que não é pra qualquer um... mineira à frente do seu tempo e a favor do casamento, foi namoradeira, mas não quis se casar... preferiu ser independente e morar sozinha, viajar, trabalhar nos Estados Unidos e voltar quando lhe desse na telha, pagar suas contas e ajudar a família... não precisou ter filhos para sentir-se mãe, nem se importou com o que poderiam pensar dela; preocupou-se com o que ela mesma pensava de si. Sábia, generosa e satisfeita consigo e com a vida que cultivou, Marina Paiva é uma lição imperdível de vida.



 
Como é chegar aos 87 anos?
É bom ter vivido todo este tempo e aproveitado a vida. Sempre pensei positivo e esperei pelo melhor, trabalhei muito e busquei tratar bem as pessoas, pensar sempre que todos nós somos iguais. Lembro que tinha um bordel perto da minha casa e eu sempre cumprimentava as prostitutas na rua. Elas chegavam a ficar agradecidas: diziam “essa moça é tão boazinha!”.
 
 
Você foi uma mulher muito moderna para a sua época. Foi muito difícil?
Sempre fui muito livre, mas com honestidade e respeito, e nunca dei importância ao que poderiam pensar ou dizer de mim. Se alguém pensasse que eu era vigarista, tudo bem, porque eu sabia que não era, e isso me bastava. Viajava sozinha, era independente, fui muito bonita e gostava de namorar. A mulher precisa de um homem. Homem é uma coisa muito boa, nem que seja pra espantar cachorro brabo na rua. Você sabe? Não me arrependo de nada, só do que não fiz. Sou muito feliz com a vida que tive.
 
Você teve mais de 50 pedidos de casamento, mas preferiu ficar solteira. Por quê?
Sou a favor do casamento e acho que as mulheres devem se casar, ter filhos, construir uma família. Mas o caso é que eu pensava muito antes de dizer sim. Pensava no quanto minha vida ia mudar e acabava não aceitando. Uma vez fiquei noiva porque o rapaz insistiu demais. Vim para o Rio pra fazer o enxoval e mandei um telegrama desmanchando tudo. No fundo, não queria um marido mandando na minha vida, porque na minha época, os homens eram muito machões. Se fosse hoje, de repente eu casava, porque os homens são mais liberais e agora é muito fácil separar.
 
E a maternidade? Ter filhos é essencial na vida da mulher?
Isso não tem nada a ver, você pode ser mãe até do seu pai, quando ele ficar velhinho. A maternidade é um conceito que pode ser aplicado a qualquer coisa que a mulher crie, faça, desenvolva ou ame.
 
Como você lida com as limitações da idade?
Lido com a doença como se ela fosse passageira e penso sempre que vou melhorar. Procuro preencher meu tempo com coisas que posso fazer e que me dão alegria, senão a vida fica muito dura de ser vivida. Minha sorte é que me vejo querida por todos, até por desconhecidos na rua, que me tratam bem.
 
Que conselho você dá aos mais jovens?
Que comecem a cuidar da saúde agora, enquanto é cedo. Isso é muito importante. Na juventude, não temos idéia da alegria e da força que temos; a gente não pensa que vai envelhecer, que vai precisar dos outros, ficar debilitado e ter uma vida tão diferente. Pra envelhecer bem e com saúde, é preciso começar a se cuidar cedo.
 
 
Hoje, do alto dos 87 anos, como você enxerga os problemas típicos da vida, como falta de dinheiro ou dificuldade de relacionamento?
Você deve tentar sempre resolver seus problemas com as pessoas da melhor maneira possível, sem agressividade ou estupidez. Brigar, só se for pra defender os seus direitos, e assim mesmo, se você tiver certeza de que vai entrar na briga pra vencer. Senão, não vale a pena o desgaste, o aborrecimento, o tempo perdido. E dinheiro é o seguinte: a gente envelhece e entende que ele vem e vai, e que também não vale a pena sofrer por causa dele. Dinheiro nem é o principal, sabia? Família e saúde vêm na frente. A verdadeira riqueza que a gente tem é a vida.



Minha melhor amiga bem poderia ter inspirado o Dorival Caymmi, veja só:



Quem tem 87 já teve seis, olha:


 

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Sobre os "Cinquenta tons de cinza"

Quis conhecer o tal do Christian Grey (será parente distante do Dorian?), e ver que borogodó é este que o sádico que anda conquistando a mulherada mundo afora tem... e comecei a ler os tais “Cinquenta tons de cinza”.

Nas primeiras linhas fui remetida às páginas daquelas antigas revistinhas “Bianca” e “Sabrina”, que uma das minhas irmãs mais velhas devorava em vez de estudar para as provas, e que eu lia junto, escondido da minha mãe, quando tinha lá pelos 13 anos.
Era sempre a mesma coisa: homem meio bruto, rico, lindo, distante e irresistível tratava quase aos tapas a moça metidinha a independente, livre, moderna, estabanada e inexperiente... mas que gostava mesmo era de um cara meio troglodita pra chamar de seu. O enredo nunca mudava e girava em torno de situações eróticas cuidadosamente construídas para não chocar as leitoras, dos desentendimentos entre o casal de apaixonados, do sofrimento dela e dos olhos frios e metálicos... do sorriso enigmático... e do desprezo superior dele. Logo me enchi da mesmice de sempre nas páginas das tais revistinhas e descobri a sra. Barbara Cartland, inglesa famosíssima por suas histórias adocicadas e adepta de uma receita mais ou menos parecida, porém sem sexo, é claro, e por isso mesmo muito mais romântica.
De "Sabrina" e "Bianca" para os "Cinquenta Tons...", a diferença é só uma: agora o sexo é preto-no-branco mesmo, com mais cinquenta tons de cinza dando todos os detalhes que, àquela época, nenhum editor toparia publicar, sob pena de escândalo, excomunhão e falência.
Insisti com o sr. Christian Grey e tentei chegar às tais situações de sadomasoquismo, mas desisti da história quando a protagonista, virgem e inexperiente, e que consegue a proeza de enrubescer de uma a três vezes em quase todas as páginas, tem três orgasmos em sua primeira supertransa com o macho man da história, um amante jovem, mas cujas habilidades deixariam o velho Casanova roxo de inveja.
Numa última tentativa, corri algumas páginas à frente para dar gargalhadas, junto com o meu marido, quando soubemos que a mocinha, em dado momento, se declara irremediavelmente gamada pelo homem que quer encaixotá-la amarrada e amordaçada.
Fico pensando que, daqueles tempos em que as revistinhas“Bianca” e “Sabrina” eram um sucesso de vendas junto com as fotonovelas “Grande Hotel”, tanta coisa mudou no mundo e no dia a dia da mulher... aliás, ainda existe fotonovela?
E, no entanto, este sucesso estrondoso do Christian Grey surge como uma radiografia da mentalidade do público feminino, mulheres das mais variadas nacionalidades, idades, classes sociais, escolaridades e profissões... uma radiografia que não deixa de ser incoerente com o discurso e a pose de independência, liberdade e modernidade adotado por elas... exatamente como as personagens de "Sabrina" e "Bianca" há mais ou menos trinta anos.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Entrevista: Marcos Lúcio Pinto

"Tentei ser a mudança que quero ver no mundo".
 
Todos os que freqüentam este blog regularmente já conhecem o Marcos Lúcio, “comentarista” que não abandona o posto e sempre tem uma palavra, uma idéia, um ânimo guardado no bolso do paletó. (Não, não é no bolso do jeans... Marcos Lúcio tem uma alma muito mineira, daquelas do tempo dos “paletós”). Na condição de "pitaqueiro-mor" deste respeitável blog, foi convidado para se apresentar melhor aos leitores, entre os quais já coleciona fãs.

Otimista inveterado, este ex-professor e ex-funcionário público não esconde que já sofreu muito de solidão e preconceito, amargou paixões e colheu 58 “jacas no jardim da vida”. E ainda diz: “demasiado velozmente”. Leitor voraz, principalmente de filosofia, e dotado de um bom-humor contagiante, ML é um bom papo para qualquer hora, qualquer que seja o contexto...

Auto-didata, não pode passar perto de uma livraria caso queira economizar um tutu: gastar com livros é um prazer e um vício para ele, que encontrou sua paz no equilíbrio entre a solidão e a arte de fazer amigos... amante de Paris, ele também gosta de viajar para lugares diferentes, e em breve dará notícias, aqui no blog, de sua passagem pela Mama África. Aguaaaaaaarde...
 
 
 
Qual a sua maior preocupação na vida? Por quê?

Na verdade sou de me ocupar, de agir, muito mais do que me preocupar, o que considero um despropósito, e faço de tudo, muita neuróbica mesmo, para não perder tempo com isso, pois de nada adianta. Afinal, o que tem de ser tem força, e a gente, querendo ou não, acontece... e nem existe bispo para ouvir nossas queixas. Concordo com esta sacada do Caetano: "é incrível a força que as coisas parecem ter, quando elas precisam acontecer". Logicamente meu foco é saúde, liberdade, amizade e autonomia emocional, que requerem um cuidado eterno, assim como saber lidar com as finanças, para que não tenhamos reais e desagradáveis desestruturações...o resto dá-se um jeito.

Qual o maior obstáculo que você já enfrentou? Quantos anos tinha? Foi difícil?

Foi descobrir, ainda na adolescência, que eu era diferente em tudo, e de todos os meus colegas, meio contra a corrente mesmo. Nem futebol como eles, eu gostava de jogar... Mas o pior foi no nível do desejo erótico (sim, a vida é somente de diferenças e diversidades), totalmente à revelia, e muiiiiiiiiito a contragosto. Eu não tinha a menor noção do que estava acontecendo, só sabia que não queria aquilo "internalizado", em hípótese alguma, a ponto de entrar inúmeras vezes na Igreja e pedir a Deus que tirasse de mim aquele "incômodo desejo". Sabedor de que não era uma coisa normativa, e ainda sem saber bem o que era, não tive coragem (e fiz bem), de contar para ninguém. Sei, portanto, o que é um "exílio" ou uma potentíssima solidão ou desamparo, como queiram. Foi dificílimo, claro, pois é o maior desafio humano que conheço. Até os pais são contra você...Como entre a caça e o caçador quem vence é a natureza, fiz da tripas coração, esforcei-me desesperadamente, e debalde. A vontade de Deus foi superior. Continuei lutando por muito tempo, forçando a barra com muitas namoradas, quase ficando noivo, até, pasme! Sendo de tradicional família mineira, sem comentários...dá pra imaginar...o tamanho da "ingrezia" (rsrs) que esta vida impôs a mim, sem pedir licença ou perdão. Como no bom mineirês, de novo, "o que Deus risca, ninguém rabisca", percebi , nitidamente, que eu era uma formiga querendo vencer um canhão...aceitei este capricho imposto pela mãe-natureza e, tempos depois, o que eu supunha lagarta, transformou-se em borboleta azul. Ato contínuo, descansei da luta inglória e descobri a felicidade erótica a mim destinada, finalmente.

Você tem muitos amigos, e eles estão sempre aqui no blog. Como conseguiu ser tão querido e admirado por tantas pessoas?

Esforcei-me demais, durante loooooooongos anos, justamente por ser crítico e inconformado, para ser o exemplo de comportamento que admiro, ou melhor, procurei desenvolver as qualidades ou virtudes que me causavam admiração. Se quisermos, digamos que tentei ser a mudança que espero ver no mundo, e consegui. Além disso, faço ao próximo _ colocando-me no lugar dele_ exatamente o que comigo gostaria que fizessem. Por sorte, tenho uma (quase) natural predisposição para o bom humor. Sou animado (entusiasmado e vigoroso, diriam os mais chegados rsrs...) e bastante espirituoso na avaliação dos meus conhecidos, que dizem, ainda: sou generoso e ético rsrs...Como não somos os melhores ou os isentos juízes de nós mesmos, espero que eles não estejam equivocados.. Este saboroso coquetel que para alguns infelizes pode ser um porre (e destes, cruzes! quero distância intergalática rsrs...) acredito que facilita e muiiiiiiiito a empatia...daí para a simpatia não demora, e o salto para a fundamental amizade não encontra impedimento, ao contrário. Só que os mais verdadeiros e leais amigos não podem, por todos os motivos, ser tantos assim. Inimigos, não possuo unzinho sequer para contar. Os que avalio como indiferentes ou desprezíveis rsrs...não posso ignorá-los, e fico atento e tomo a prudente distância... Quem imagina (que falta de imaginação, ou imaturidade, hein?), que sou perfeito ou completo_o que é impossível para qualquer mortal_ deve pensar, também, que berimbau seja gaita ... rsrs.

Você disse, em certo comentário, que as paixões ficaram no passado. Está convencido de que a paixão é sempre um mal?

Talvez não tenha ficado claro: além de eu ser caleidoscópico, complexo e "sui generis" demais da conta rsrs...Sei que vou mexer em caixa de marimbondos, até porque, o que se ama é o amor idealizado, muito mais do que a pessoa amada. E vou estender-me além da conta...Na verdade, vivo em estado de paixão e sou como dizem os mais próximos (e até os mais distantes...) um misto de exuberância e entusiasmo. Porém, com equilíbrio suficiente para não ser espaçoso, inconveniente, e não atrapalhar a brochada de ninguém rsrs...Se a pessoa está fazendo retiro espiritual, pode contar com meu silêncio sepulcral, obviamente. Mas vivo diuturnamente apaixonado pela liberdade, pela autonomia, pela música de excelência (ouço toooooooodos os dias), pela arte, pela abençoada natureza, pelos amigos leais, pelo conhecimento (embora eu seja ignorante em inúmeras questões), pela boa festa, pela conversa inteligente, pelas viagens de destinos únicos, culturais e/ou exóticos historicamente, pelo carnaval de sambas de enredo, marchinhas e frevos (exclusivamente), pelo delicioso champanhe e "otras cositas más".

Como a paixão humana foi muito bem resolvida por Shakespeare, com os adolescentes Romeu e Julieta nas suas idades pertinentes e justificáveis, vamos combinar que isto nem ficaria bem para um senhor que já dobrou o cabo da boa esperança rsrs. Nada desorganiza tanto a vida, ou coloca a pessoa tão frágil e à mercê de riscos do que o (inferno) das paixões por uns e outros. Como já a tive no passado, dela não mais preciso, em hipótese alguma. E, aliás, parece-me primária ou ingênua demais.

Sinto somente a necessidade de ser saudável, livre e feliz... e o Todo Poderoso, benevolente, tem ajudado nestas conquistas, ainda bem! Acrescente-se o fato de que não nasci para constituir família, muito menos ter filhos (parabéns e meus respeitos sinceros aos assim constituídos, e que sejam felizes nesta árdua missão!). Mas isso não impede que eu queira beijar na boca, fazer e receber carinhos e outras delícias mais e, o melhor: acontece com o mútuo, cuidadoso, livre e prazeroso consentimento das partes envolvidas, sem apegos e comprometimentos. Cada um deve ser feliz como pode, ou deve, caetanovelosamente, "saber a dor e a delícia de ser o que é". Acredito convictamente que os discordantes, são, igualmente, filhos do mesmo Deus e "pas de probleme". Cada macaco no seu galho rsrs...e sem invejar o galho alheio, "please"!

Embora eu já tenha experimentado várias relações, inclusive já tive uma de década, quase sempre senti-me solitário nestas circunstâncias...o que jamais aconteceu entre amigos, ou enquanto solteiro e vivendo satisfatoriamente só e sem nenhuma solidão. Evidente está que a minha singularidade absoluta não está vocacionada para o amor romântico, mas não deixo de admirar e respeito a quem o queira ou dele precise.

Na verdade, sou uma pessoa extremamente amorosa (sou amor da cabeça aos pés...), afetuosa, respeitosa... porém, sem talento, competência, carência ou necessidade de cara-metade: já me fiz inteiro e feliz, com muito esforço, leitura, experiências e luta. Porém, repito, ainda incompleto e imperfeito como qualquer mortal, e fazendo diuturnamente o trabalho de manutenção e restauração do estado de espírito pleno (na medida do possível... ideal ou completo , esqueçam, é um devaneio, portanto, inalcançável e frustrante).

Qual a sua relação com Deus e com a religião?

Para não ferir suscetibilidades, em que pese o fato de eu não praticar religião alguma, mesmo sendo espiritualista até não mais poder, vou pular esta, ou chamar os "univers-otários" para responder rsrs.... Respeito profundamente todas, sem exceções, e não concebo que alguma, estúpida ou prepotentemente, possa se sentir superior a outra. Porém, assim como Ádélia Prado, acredito absolutamente que: "uma borboleta pousada sobre uma flor ou é Deus ou é nada". Creio mesmo que seja o TODO PODEROSO.

 

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Náufrago no oceano de si mesmo

O filme “As aventuras de Pi” guarda um segredo interessante: as tais “aventuras” do garoto que se vê náufrago em um bote, em pleno Oceano Pacífico, e ainda por cima ao lado de um tigre selvagem, são uma metáfora tão poética quanto tremenda... porque acontecem em meio ao oceano interno do homem e às maravilhas e perigos que o habitam.

Prova de fé para alguns, rito de passagem para outros, descoberta dos próprios potenciais como indivíduo: o filme, na verdade, é um pouco de tudo isso, somado à capacidade humana de adaptar-se à realidade através da fantasia, do sonho, da fuga, do desespero. Que nunca pediu arrego em algum momento de profunda solidão e desamparo? Quem nunca precisou sonhar acordado ou acreditar em milagres impossíveis para aguentar a realidade?
E, no entanto, é das garras da solidão que saímos mais vivos e fortes do que nunca. Só quando enfrentamos o perigo ou a indignação, seja pela fome de pão, de justiça, de alegria ou de futuro, é que tiramos de dentro de nós mesmos aquele animal selvagem que, em águas sempre cálidas, jamais apareceria.
Todos temos um bicho feroz escondido internamente, pronto para nos defender ou ser conquistado, mas nunca para ser domado, domesticado ou adestrado. Um animal violento e impetuoso, capaz de tudo em nome da sobrevivência e de sua soberania, e que nos assusta a nós mesmos quando aparece, repentino, em nome de continuar existindo.

É a força da vida, selvagem dentro da gente... verdades inventadas nas quais precisamos acreditar para suportar certas coisas, o duelo entre o que acreditamos e o que é necessário fazer: o impasse entre o certo e o errado, entre viver ou morrer. É a força da vida que se manifesta no homem, de dentro para fora, uma força tão grande que nem a gente sabe de onde veio, e que estará sempre lá, para nosso conforto e confiança: força vital para alguns, instinto de sobrevivência para outros. Para mim, simplesmente, a manifestação de Deus em cada um de nós.
 

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Entrevista 2: José, o guardador de carros

"A boa convivência vem da humildade"

Um dia não resisti e levei o gravador para uma conversa mais longa com aquele guardador de carros. De cara ele bancou o durão. “Entrevista?” questionou, cabreiro. “Não confio em jornalista não... sei que a gente não pode confiar neles. Quem me garante que você vai escrever o que eu disser?”. Gostei mais ainda daquele senhor, cuja inteligência e polidez são tão visíveis, mesmo nos poucos minutos que levo para estacionar meu carro na vaga que ele, volta-e-meia, me arranja. “O sr. vai ter que confiar nas minhas intenções...” respondi.
Por sorte, o santo dele bateu com o meu, ele relaxou e conheci melhor o José, carioca de 69 anos que quase não estudou e por muitos anos teve trabalhos braçais, até encontrar o profissão que considera a melhor. Casado três vezes e pai de oito filhos, este novo amigo comprova minha crença de que élan, finesse e inteligência são mesmo dons que vêm na alma da gente.
 

O sr. é carioca?
Nasci no Rio. Peraí que eu preciso atender o cliente aqui. Pronto. Fui criado assim: nasci no Lins e saí de lá com 28 anos, pra Madureira.
 
E onde o sr. já trabalhou?
Num bocado de lugar. Primeiro no mercado, lá em São Cristóvão, mas já faliu. Eu era entregador de compras, e depois passei pro balcão. De lá, fui pra Piraquê, fazer entrega na rua; depois pra Sendas, onde comecei carregando saco na cabeça e terminei chefe de seção. Saí de lá porque não tolerava mais cliente bagunceiro. Eu arrumava a mercadoria na seção de cereais, deixava tudo direitinho e o cliente ia lá e puxava a caixa que estava embaixo de todas. Aquilo estava me saturando, e pra não fazer ignorância com o cliente, que é a prioridade da empresa, pedi ao gerente pra me mandar embora.
 
O povo é sem-educação, né?
É terrível.
 
E depois das Sendas?
Deixa eu ver... fui ajudante de caminhão na Transportadora Goiás, depois fui pra uma outra que eu não lembro o nome... peraí, deixa eu pensar, vou lembrar... ah! Radial! Depois, fui pra barraquinha de cachorro-quente, na praia do Leblon. E deixei pra ser guardador, que dá mais dinheiro. Tô aqui desde 1988.
 
O sr. já está aposentado?
Jáááá... aposentei por idade. De todos os serviços que tive, guardador de carro é o melhor, porque todos os dias eu tô com o meu dinheirinho no bolso. Preciso de um dinheiro? Não preciso implorar um vale para o patrão. Trabalho em média seis, sete horas...
 
Na chuva...
Aaaaahhhh, isso é. Na chuva, no sol, faz frio, faz calor...
 
É um trabalho muito sacrificado.
Minha filha, o trabalho, pra ser bom aos olhos de Deus, tem que ser sacrificado. Serviço mole é problema dos sérios. Nada fácil presta, pode ter certeza.
 
O povo dá muito calote?
Acontece. Já não é tanto hoje em dia porque já tenho uma freguesia que me conhece e está acostumada com a minha maneira de me relacionar, então hoje é mais fácil. Tô aqui há 16 anos.
 
É que o sr. é muito gentil.
É meu dever, minha senhora! Quem lida com o público tem a obrigação de ser gentil, mesmo que a pessoa não seja gentil por natureza, a função obriga a ser. Pronto? Acabou?
 
Não. Tá acabando. Antes me diz quem é que não gosta de pagar.
O caloteiro existe em todo lugar, tem sempre um mau-caráter por aí. A gente tem que aprender a separar o joio do trigo, as pessoas boas das más. E com as más, que tratam a gente mal, sabe o que é melhor fazer? Dar o silêncio como resposta. Se você fizer estupidez pra ele também, vai se igualar a ele. A gente tem que mostrar que pode não ter dinheiro, mas tem respeito pelo semelhante.
 
O público que tem carro grande é diferente do que tem carro pequeno?
Mais vale um cara que chega com um Fusquinha, um Golzinho, um carrinho caidinho, do que o que chega com um carrão. Esse aí geralmente quer humilhar a gente. Eu falo com ele e ele se faz de posudo, finge que não escuta... e o guardador tem que se virar pra fazer ele chegar a uma boa conclusão...
 
Dá pra tirar um dinheirinho bom?
O suficiente pra sobreviver. Melhor do que ser empregado. Eu gosto desta profissão. Chego em casa e tem um negócio pra comprar... se o meu dinheiro não der pra comprar hoje, eu compro amanhã ou depois. O patrão sempre diz “não” quando a gente pede uma ajuda. O ruim é o sol e o mal-humor do cliente.
 
O sr. sabe dirigir?
Não.
 
Nem botar o carro na vaga?
É proibido guardador entrar no carro.
 
Qual o carro que o sr. mais gosta?
Todos. Desde que me paguem, todos.
 
O sr. conversa muito bem.
A vida é que me ensinou. Mas cultura eu não tenho. Estudei até a terceira série, lá por volta de mil novecentos e nada. Você me manda falar, eu falo. Mas escrever...
E ler?
Mais ou menos.
 
Mas o sr. sabe que é muito inteligente, né?
As pessoas dizem. Fico sensibilizado com isso, mas infelizmente... não tenho cultura. Sabe, não é a cultura que faz a pessoa ser educada, é o dom, a natureza, a escola da vida... educação a gente não compra, já vem de berço. Talvez, se eu tivesse dinheiro, não fosse a pessoa que eu sou, nem tivesse esta maneira de falar com os outros. A boa convivência vem da humildade. A pessoa que conhece o sofrimento, quando tem uma oportunidade de trabalho na vida, ela se agarra de unhas e dentes. Entendeu, minha filha? Sabe dar valor. Se eu sair daqui pra procurar outro serviço, não vou ter esta facilidade. Se eu achar quem me dê emprego, vou ter que encarar um salário mínimo, e olhe lá! Hoje, pra arrumar um emprego de gari, tem que saber ler e escrever.

 
O sr. acredita em Deus?
Muito. Sem Ele a gente não é nada. Temos que buscar Deus a todo momento, e agradecer a Ele esta maravilha de mundo que a gente vive. Não é bom trocar o ar nos pulmões? É a maravilha da vida. Se a gente respeita e ama a Deus, as bênçãos vêm naturalmente. E de resto, é só correr pro abraço.