terça-feira, 19 de janeiro de 2016

A libertação no envelhecimento

Estou prestes a completar 48 anos, e a cada ano vivido me pego gostando mais de viver. Chega a ser engraçado -- para não dizer trágico --  que quanto mais me aproximo da "maldita", mais me divirto com a "bendita"... mas é aí mesmo que está a beleza da coisa; e talvez a tal da "sabedoria da idade", embora eu esteja longe de ser sábia ou idosa.

O fato é que envelhecer é um lance muito legal, e é mesmo. A gente tem é que parar de olhar para a idade com os olhos de sempre: doença, dependência, decrepitude, limitação, finitude...

E o lado bom, como é que fica? Independência de pensamento, liberdade interna, perdão, desprendimento, consciência de si, desapego, coragem para saltos inimagináveis, sapiência para ver e ouvir detalhes... e o óbvio, que é o fato de ter vivido, de ter chegado lá, ora pois! Isso não conta? Olha, meu bem... isso faz toda a diferença!

Vejo o retrato da minha avó, aos 50 anos. Era uma velhinha. Toda de preto. Não faz muito tempo que as mulheres de 50 eram velhinhas. As de 60 então... e hoje, no entanto, a mulher de 50 está no auge para desfrutar dos anos que virão cada vez mais consciente e plena de si mesma e de sua vida, de suas escolhas, de suas atitudes e responsabilidades sobre si mesma e sobre seu entorno.

Homens e mulheres descobrem cada vez mais que não precisam apegar-se a um só papel profissional, familiar, social ou sexual. Somos seres mutantes, e o envelhecimento nos dá a prerrogativa, o tempo, a oportunidade, a libertação para mudar de ideia e seguir de outro modo, sem que qualquer cobrança nos impeça.

Se a juventude é uma força da natureza, que nos impele a viver cada minuto com ímpeto e sofreguidão, eu diria que a velhice, que já antevejo, é uma potência ainda mais forte por fazer de nós seres dotados de consciência e liberdade.








terça-feira, 12 de janeiro de 2016

David Bowie e Oliver Sacks ensinam a não temer a morte





Não poderia ser diferente! As últimas gotas de sangue nas veias de David Bowie só poderiam mesmo ser gastas para cantar e gravar um clipe. Fiquei emocionada ao ver o esforço que Bowie, terminal, empreendeu para viver a vida até o fim, chupar a laranja até o bagaço, incluindo o caroço.

A verdade de "Lazarus", impregnada em cada nota, em cada palavra, em cada dobra dos lençóis, em cada ruga no rosto, na dor e na emoção de Bowie ultrapassa os limites da física e vaza pela tela do I-pad. Contagia-nos porque não se trata de um clipe: é a verdade, nua e crua que se estampa frente aos nossos olhos. Ali está um homem cheio de cicatrizes, e no momento em que o assistimos, já canta do céu.

"Lazarus" é um hino à vida. Um aviso, também, deixado a todos nós por alguém que, de tanta sede de viver, jamais se conformou em ser um só. Performático, andrógino, bissexual, metamorfose constante, cantor, ator, produtor, ousou ser muitos em um só e mal coube nesta vida. E avisa-nos, com este clipe derradeiro, que todos os instantes da existência são de inestimável valor.

Tanto quanto Bowie, Oliver Sacks, famoso neurologista inglês morto em agosto último devido a um câncer, foi um sábio amante do viver. Sacks também espalhou-se por outras áreas e foi ainda professor e talentoso escritor capaz de transpor diversas deficiências físicas para o papel de modo muito singular, poético e compreensível para o leigo: falo de pérolas como "O homem que confundiu sua mulher com um chapéu", "Tempo de despertar" e "Vendo vozes", só pra citar alguns. E que, como vimos no final, foi não somente um mestre na arte de viver, mas também na arte  de morrer.

Ao contrário de Bowie, Sacks não era uma estrela das multidões: reservado por natureza, e marcado pela rejeição familiar devido à sua homossexualidade, ganhou maior popularidade fora do círculo acadêmico em fevereiro do ano passado, quando o jornal "The New York Times" publicou uma carta sua  respeito de seu câncer terminal.

A carta era um verdadeiro agradecimento à vida! O reconhecimento do medo, mas também da certeza de haver vivido intensamente.

Bowie e Sacks me ensinaram que a melhor maneira de não temer a morte é viver a vida com a maior consciência e desejo que formos capazes. E eu lhes agradeço por isso.


Leia, a seguir, a carta de Sacks:

"Há um mês, eu sentia que estava em boas condições de saúde, robusto até. Aos 81 anos, ainda nado uma milha por dia. Mas a minha sorte acabou – há algumas semanas, descobri que tenho diversas metástases no fígado. Nove anos atrás, encontraram um tumor raro no meu olho, um melanoma ocular. Apesar da radiação e os lasers que removeram o tumor terem me deixado cego deste olho, apenas em casos raríssimos esse tipo de câncer entra em metástase. Faço parte dos 2% azarados.

Sinto-me grato por ter recebido nove anos de boa saúde e produtividade desde o diagnóstico original, mas agora estou cara a cara com a morte. O câncer ocupa um terço do meu fígado e, apesar de ser possível desacelerar seu avanço, esse tipo específico não pode ser destruído.
Depende de mim agora escolher como levar os meses que me restam. Tenho de viver da maneira mais rica, profunda e produtiva que conseguir. Nisso, sou encorajado pelas palavras de um dos meus filósofos favoritos, David Hume, que, ao saber que estava terminalmente doente aos 65 anos, escreveu uma curta autobiografia em um único dia de abril de 1776. Ele chamou-a de “Minha Própria Vida”.

Estou agora com uma rápida deterioração. Sofro muito pouca dor com a minha doença; e, o que é mais estranho, nunca sofri um abatimento de ânimo. Possuo o mesmo ardor para o estudo, e a mesma alegre companhia de sempre.”
Tive sorte de passar dos oitenta anos. E os 15 anos que me foram dados além da idade de Hume foram igualmente ricos em trabalho e amor. Nesse tempo, publiquei cinco livros e completei uma autobiografia (um pouco mais longa do que as poucas páginas de Hume) que será publicada nesta primavera; tenho diversos outros livros quase terminados.

Hume continua: “Eu sou… um homem de disposição moderada, de temperamento controlado, de um humor alegre, social e aberto, afeito a relacionamentos, mas muito pouco propenso a inimizades, e de grande moderação em todas as minhas paixões.”
Aqui eu me distancio de Hume. Apesar de desfrutar de relações amorosas e amizades e não ter verdadeiros inimigos, eu não posso dizer (e ninguém que me conhece diria) que sou um homem de disposições moderadas. Pelo contrário, sou um homem de disposições veementes, com entusiasmos violentos e extrema imoderação em minhas paixões.

E ainda assim, uma linha do ensaio de Hume me toca como especialmente verdadeira: “É difícil”, ele escreveu, “estar mais separado da vida do que eu estou no presente.”
Nos últimos dias, consegui ver a minha vida como a partir de uma grande altitude, como um tipo de paisagem, e com uma sensação cada vez mais profunda de conexão entre todas as suas partes. Isso não quer dizer que terminei de viver.

Pelo contrário, eu me sinto intensamente vivo, e quero e espero, nesse tempo que me resta, aprofundar minhas amizades, dizer adeus àqueles que amo, escrever mais, viajar se eu tiver a força, e alcançar novos níveis de entendimento e discernimento.
Isso vai envolver audácia, clareza e, dizendo sinceramente: tentar passar as coisas a limpo com o mundo. Mas vai haver tempo, também, para um pouco de diversão (e até um pouco de tolice).

Sinto um repentino foco e perspectiva nova. Não há tempo para nada que não seja essencial. Preciso focar em mim mesmo, no meu trabalho e nos meus amigos. Não devo mais assistir ao telejornal toda noite. Não posso mais prestar atenção à política ou discussões sobre o aquecimento global.
Isso não é indiferença, mas desprendimento – eu ainda me importo profundamente com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com a crescente desigualdade social, mas isso não é mais assunto meu; pertence ao futuro. Alegro-me quando encontro jovens talentosos – até mesmo aquele que me fez a biópsia e chegou ao diagnóstico de minha metástase. Sinto que o futuro está em boas mãos.

Nos últimos dez anos mais ou menos, tenho ficado cada vez mais consciente das mortes dos meus contemporâneos. Minha geração está de saída, e sinto cada morte como uma ruptura, como se dilacerasse um pedaço de mim mesmo. Não vai haver ninguém igual a nós quando partirmos, assim como não há ninguém igual a nenhuma outra pessoa. Quando as pessoas morrem, não podem ser substituídas. Elas deixam buracos que não podem ser preenchidos, porque é o destino – o destino genético e neural – de cada ser humano ser um indivíduo único, achar seu próprio caminho, viver sua própria vida, morrer sua própria morte.
Não posso fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Amei e fui amado; recebi muito e dei algo em troca; li, viajei, pensei e escrevi. Tive uma relação com o mundo, a relação especial de escritores e leitores.

Acima de tudo, fui um ser senciente, um animal pensante nesse planeta maravilhoso e isso, por si só, tem sido um enorme privilégio e aventura.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Carol, sufragistas e escravas da Idade Média

"Carol" é um dos filmes mais bonitos que já vi. Conta a história de um amor impossível, o marido louco de amor pela mulher que o ama e respeita como amigo... mas não o quer.

E vai desnudando aos poucos como se constrói a paixão em brasa entre duas mulheres na Nova Iorque dos anos 50, quando a homossexualidade era assunto a ser discutido por advogados, psiquiatras e juízes... e a vida privada poderia tornar-se um inferno da noite para o dia.

E então a paixão se transforma em amor. E ninguém melhor que Rooney Mara e Cate Blanchett para nos contar esta história, em cenas belíssimas, silêncios e falas muito certeiras, que nos fazem pensar, nós, as mulheres do século 21, a respeito da nossa liberdade... esta liberdade da qual hoje desfrutamos sem pensar, e que foi tão duramente conquistada por nossas ancestrais, irmãs cujo sangue talvez nem tenhamos nas veias, mas que, onde estiverem, são nossas irmãs de gênero e alma. E que sofreram na carne e no espírito limitações tremendas para conquistar este espaço psíquico e social que hoje habitamos.

Dias atrás vi "As sufragistas", filme sobre a luta das feministas do Reino Unido pela conquista do voto feminino no começo do século passado, no qual Meryl Streep faz uma pequena ponta, suficiente para um discurso e a frase "não desista!".

E ali estava a mulher subjugada, dominada, dobrada ao macho, seu senhor e proprietário. Algo bem parecido com o que hoje assistimos, queixo caído, em países do Oriente Médio: o patriarcado em essência.

De novo estavam elas, as marginais que lutavam por seu lugar ao sol, por seu direito à luz, à fala, por seu direito a ter direitos! Algo tão elementar... e no entanto, minhas amigas, foi ontem! Porque não faz muito tempo, não...  Não faz muito tempo que nós tínhamos que nos esconder de tudo, tínhamos que dizer sim a tudo, tínhamos que obedecer a tudo!

E o pior... é que há muitos lugares no mundo onde milhões de mulheres ainda hoje permanecem subjugadas, escravizadas, estupradas por maridos, pais, irmãos e até filhos. Permanecem sem direitos a nada e tendo que obedecer a tudo, a dizer sim a tudo, a aceitar e a viver uma vida de sofrimento sem fim.

Para milhões de mulheres no mundo, o mundo continua sendo aquele, bem anterior à Nova Iorque dos anos 50 e ao Reino Unido das sufragistas: é o universo das sombras da Idade Média, quando o sol girava em torno da Terra e o homem (o macho!) era o centro de tudo...

No conforto da sala do cinema, comendo pipoquinha, esta constatação parece coisa de outro planeta... mas incrivelmente não é.



terça-feira, 5 de janeiro de 2016

O Macbeth de cada um

"Amanhã, amanhã, amanhã..."

A fala de Macbeth, vivido por Michael Fassbender nesta versão cinematográfica de 2015, é dita numa belíssima cena de loucura e morte, dor e despedida, tomada de consciência e arrependimento. Todos estes, os ingredientes da saga dos Macbeth, tão furiosamente tragados pela volúpia da ambição, uma cegueira tão tipicamente humana.

Outra vez os críticos não gostaram. E eu amei. Pensei logo no que aproxima Shakespeare de Machado de Assis. Ambos mais atuais e profundos do que nunca. Conhecedores da alma e das tentações do homem. Sabedores das pequenezas que nos dominam e assolam. Tornaram-se imortais por isso mesmo: o tempo não apaga a voz da razão.

Se Machado sabia que "a ocasião não faz o ladrão, pois o ladrão nasce feito", Shakespeare fazia das misérias humanas as personagens principais de seus escritos. No caso de Macbeth, a tentação, na forma de bruxas, diz ao honrado guerreiro que ele há de ser rei. E o honrado guerreiro, que de honrado não tinha nada, mata o rei e toma-lhe o lugar. Amaldiçoa-se, sem saber, pois não contava ter consciência.

Macbeth trata da tentação diária de todos nós, das mais ínfimas aos maiores horrores.

E quem tiver olhos, que veja. E quem tiver ouvidos, que ouça.