quinta-feira, 30 de maio de 2013

Linha do horizonte

É tudo susto: a casa, os dias;

(Ave longínqua, a sombra das mãos tuas)

E a vida à frente,

Escada abaixo,

Como tropeço cego,

Eu e o ar.

É tudo novo, velho só o medo.

Este pavor de ver a vida,

Então escrevo...

Todo ferida o verso que me cai dos dedos!

E o pássaro que sou revoa, cabisbaixo,

Tateia com os pés, desesperado por degraus:

Não quer voar.

(Fernanda Dannemann)

terça-feira, 28 de maio de 2013

Mais vale ser o "doido da família, coitado!"

Na livraria, me chama a atenção “Os cem melhores contos brasileiros do século”, mas fico em dúvida quando vejo que os ditos contos foram todos escolhidos por uma só pessoa.  Este pequeno detalhe faz enorme diferença... porque o gosto pessoal do organizador certamente há de pesar na eleição, o que é um risco. Mesmo assim, encaro.

O livro é dividido por épocas, e a primeira parte, de 1900 aos anos 30, deixou-me a desejar. É ali que estão, por exemplo, dois contos do maior de todos, o seu, o meu, o nosso Machado de Assis: “Pai contra mãe” e “Pílades e Orestes”, que em minha humilde opinião não estão entre os melhores do Machadinho. “Negrinha”, de Monteiro Lobato, “Galinha cega”, de João Alphonsus e “Baleia”, de Graciliano Ramos, me despertaram certa revolta interior... uma sucessão de horrores que me deixou até de mau-humor, e comecei a ficar com raiva do livro. Afora a narrativa exemplar, não tirei nada, nadica mesmo das histórias... só aquele mal-estar às dez e tanto da noite... 
Segui em frente, rumo à segunda parte, os Anos 40 e 50, onde encontrei duas preciosidades: “Viagem aos seios de Duília”, de Aníbal Machado, e “O peru de Natal”, de Mário de Andrade. Não sei se o organizador os colocou ali juntinhos propositadamente, mas o fato é que enquanto o primeiro fala da morte em vida, do desperdício de uma existência por um sujeito pobre de interioridade, o segundo trata justamente do contrário: a celebração da vida, a delícia de estar vivo, tão pura e simples.
“Viagem aos seios de Duília” nos apresenta um servidor público ocupado demais com as aparências e de menos com a felicidade. Chega à aposentadoria tão repentinamente que não sabe o que fazer com a “liberdade” inesperada. Não tem amigos, não tem amor, nem juventude de alma, nem sonhos, nem planos, nem nada... com as gavetas do espírito vazias, o jeito é correr ao passado, ignorante de que as ilusões são quebradiças; buscar na memória uma alegria de juventude e tentar voltar pra lá, como se fosse possível o regresso... mas não há estradas! Só o desespero acena ali à frente... é nisso que dá ser perdulário com a alegria.
“O peru de Natal”, logo na página seguinte, é uma conversa deliciosa com Mário de Andrade, que mais fala do que escreve: cada frase, cada palavra... monta uma história narrada aos ouvidos. Dá até vontade de pedir um café à garçonete. E quem fala é o rapaz de 19 anos, “o doido da família, coitado!”, que resolve afastar de casa o fantasma do pai sisudo, morto há cinco meses. É assim: ele cisma que quer um peru de Natal e uma ceia para a pequena família, sem a presença dos parentes habituais que só aparecem para desfrutar. O argumento simples nos rende uma viva narrativa sobre a decisão de ser feliz, o gesto tresloucado que só “o doido da família, coitado!”, é capaz de ter.




 

domingo, 26 de maio de 2013

Frase do dia



"Está nas vossas mãos ver numa poça de água a lama do fundo ou a imagem do céu lá no alto".
                                                                                           John Ruskin
 

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Carolina, cartolina


Carolina, Carolina,

Quem foi que disse que os teus olhos são tão tristes,
Quem te disse e tão bem te conheceu?

Carolina, cartolina,
Branca e fina igual papel,
Se carimba, Carolina,
Na tristeza em que nasceu:
Era um dia de finados?
Teu batismo foi no céu?

Vira santa, Carolina,
Chora sangue na igreja,
Que a vida é só peleja

À Carolina que sou eu.


(Fernanda Dannemann)

terça-feira, 21 de maio de 2013

Manual de sexo e de opressão

Soube hoje que existe um manual básico de sexo para judeus ortodoxos. É o “Hora de amar – Guia para intimidade física dos recém-casados”, escrito por um rabino e terapeuta sexual, em dupla com uma educadora.

Se os fiéis católicos reclamam que o Vaticano precisa se modernizar, fico imaginando o que deverão pensar, secretamente, alguns dos judeus ortodoxos que necessitam ler um manual para conhecer melhor o próprio corpo, para aprender sobre sexo e até para entender como agir na intimidade do casamento, já que entres eles o assunto é tabu na escola e em casa, locais inclusive onde meninas são separadas de meninos e onde é proibido um aperto de mão ou uma conversa "olho no olho" com o sexo oposto... onde internet e TV são proibidos, os casamentos são arranjados e os noivos em geral se conhecem no dia da cerimônia. O guia nem deve ajudar muito, considerando que ilustrações seriam imorais...

O corpo é liberdade, expressão máxima dos nossos sentimentos e emoções, expressão inclusive de quem somos; desconhecê-lo significa, antes de tudo, desconhecer a si mesmo. O corpo é também uma dádiva divina, instrumento através do qual experimentamos o mundo e a vida... se é através dele que pecamos, é através dele também que transcendemos. Mas o tabu do sexo faz justamente calar o corpo e o nosso lado humano e pleno, alegre e livre; o tabu do corpo talvez seja a pior forma de aprisionamento e submissão.
Com todo respeito às religiões e aos dogmas de cada uma, penso cá com meus botões que nada que nos oprime pode ser divino; nada que nos limite a alegria pura e simples no amor pode ser sujo ou pecaminoso. A impossibilidade de amar a si e ao outro, e os limites culturais impostos ao ser humano, impedindo-o de desfrutar do seu direito natural de escolha e possibilidades é que fere a natureza e o espírito.
Mas um dogma é um dogma, e as religiões não existem sem eles. E os homens, por sua vez, necessitam estar inseridos em uma religião e em uma cultura; romper com isso exige forças mitológicas que nem sempre temos condições de acionar, dentro de nós. Nem as palavras são livres, e falar de sexo pode ser tão sujo quanto praticá-lo. Assim sendo, as pessoas crescem cegas a respeito de sexualidade, e emocionalmente separadas por gênero em toda a infância e adolescência. E cegas entram na vida adulta e no casamento... onde a distância física e psicológica entre masculino e feminino dificilmente haverá de ser rompida... o abismo entre homem e mulher é tão profundo que um ritual de casamento não há de ser tão forte a ponto de vencê-lo.
Claro que não é preciso ser um judeu ortodoxo para nascer e crescer sob tais ditames;  muitos católicos, por exemplo, vêem pecado no corpo e enxergam a sexualidade como uma força obscura e perigosa, que deve ser dominada ou usada como instrumento de dominação.

No fim das contas, tanto quanto o tabu do corpo, o tabu da linguagem também se modifica de acordo com a cultura não só dos povos, mas a cultura familiar, aquela que a gente aprende e vive em casa (e que pode nos libertar ou nos aprisionar mais ainda): “imoral”, por exemplo, é um conceito que, para uns, aplica-se ao sexo, enquanto que para outros pode ser, simplesmente, a opressão oficializada em estado bruto.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Um velhinho plantado no jardim

O cinema é um mistério: mesmo quando o filme não é lá grandes coisas, mas os atores são bons e o argumento convence... vale a pena.

Hoje parei meu dia por quase duas horas para rever um filme argentino. Sou fã dos argentinos, mas este, “Conversaciones con mamá”, está longe de ser uma preciosidade como "Nove Rainhas”, “O segredo dos teus olhos”, “Cama adentro”, “Un oso rojo” e similares. Estes dois últimos, aliás, nunca chegaram ao Brasil, o que é uma pena. Mesmo assim, sem se tratar de um filmaço, encarei, e só porque o assunto é atemporal.
“Conversas com mamãe” acerta ao mostrar a relação distante de um filho único com a mãe velhota. Ele, sempre ocupado, sempre sem tempo, sempre impaciente, é pressionado pela esposa para vender o apartamento da mãe, onde ela viveu a vida toda, porque está desempregado e precisa manter o nível de vida. E é no rame-rame desta tentativa de convencimento que o filme se desenrola.
O enredo é previsível, o final, mais ainda. Avisei: o filme não é "estas coca-colas" e inclusive deixa passar a ótima oportunidade de falar lindamente sobre o abismo que se abre entre pais e filhos em algum momento da vida, quando os filhos se afastam porque estão cheios de prioridades mas os pais continuam ali, como se a vida fosse eterna e eles fossem mesmo "sempre estar ali". É triste pensar em como é comum acontecer de aquelas pessoas tão íntimas, afinal são nossos pais, também se tornarem verdadeiros desconhecidos para nós. Já reparou quanta história seu pai e sua mãe têm nos escaninhos do passado, e até mesmo do presente, e você nem imagina?
É interessante também perceber como são capazes, as pessoas inteligentes e amantes da vida, de rejuvenescer à medida que vão envelhecendo. Conheço várias na casa dos 80 e que são leves por dentro, livres de caretices, ideias pré-concebidas, cobranças, personagens para encenar, poses para manter. E tantos caretas de 20, 30, 40, 50 andam à solta... envenenados pelo narcisismo e pela ignorância a respeito do que realmente importa ou vale a pena na vida...
Estou sempre dizendo a mim mesma que a gente tem que cultivar a própria velhice como se ela fosse uma flor plantada no jardim de quem tem a honra de possuir um, ainda que seja na alma. Cultivar o velhinho que seremos: leve ou mala-sem-alça? Alegre ou amargurado? Rodeado de amigos ou solitário? Esperançoso ou tomado por temores? Cheio de planos ou, como cantava Raul Seixas, "esperando a mooooooorte chegaaaaaaar..."?
O ser humano frágil que nos habita o "por vir" já anda por aí, nos nossos pavores noturnos, nas nossas solidões e misérias... e em tudo de bom e precioso que trazemos dentro de nós e espalhamos pelo mundo, a começar pela esperança de ver florescer a própria força interior... e pelo amor que podemos dar a quem de fato já chegou lá.


quarta-feira, 15 de maio de 2013

Dona Lógica

"Dona Lógica usa coque e óculos, como aquelas velhas professoras que não se fabricam mais e tão chatas que, no meio da aula, sempre alguém lhes pedia "para ir lá fora". Sim, dona Lógica, a alma também precisa de um pouco de ar".
                                                                                                             Mario Quintana

                                                                                                  
  

sexta-feira, 10 de maio de 2013

O hábito brasileiro de aceitar a violência

Acabei de ler um livro sobre o quanto os hábitos comandam nossa vida... sem que a gente se dê conta. O estudo é científico e fala não só de indivíduos, mas de sociedades, e mostra que mudar um comportamento viciado é uma questão de decisão, esforço e bom-senso.

Fechei o livro e comecei a pensar no caso da violência e da discussão sobre a legislação penal que atinge os menores no Brasil. O assunto é mesmo um nó de caroço em se tratando de um país onde a desigualdade social e as políticas públicas historicamente não ajudam em nada, muito pelo contrário. E onde o povo está habituado a sofrer pela violência crescente em vários níveis, e onde o banditismo conta com a impunidade. Todo mundo mergulhado em hábitos nocivos, sem perceber.
Mas uma coisa é certa: dizer que todo jovem é boa pessoa e que, se entrou na bandidagem e na violência, foi por culpa da sociedade capitalista... é um sofisma. Não há argumento capaz de inocentar um estuprador ou um bandido em fuga que arraste um menino pela rua, preso ao carro pelo cinto de segurança. Mas aí vem a lei...e diz “calma aí porque ele é menor”.
O caso é o seguinte: não podemos pôr todos os menores infratores no mesmo saco. O rapaz de 16 anos que se arma, toca o terror em um ônibus e estupra uma mulher, não pode ser julgado e penalizado da mesma maneira que aquele que roubou um celular. Não é a idade que deveria ser a medida, mas o crime.
Enquanto isso, certos da impunidade, só em março deste ano mais de 700 jovens foram detidos no estado do Rio, em ações criminosas. A lei que deveria então proteger o menor acaba fazendo o contrário, porque a impunidade torna-se um incentivo ao crime. E se falta vontade política para mudar a lei, falta também vontade popular para forçar esta mudança.

Olha o hábito aí de novo! Reclamar é fácil, mudar é que são elas! Mas a gente se esquece que a mudança começa dentro de nós mesmos, na nossa consciência, na nossa capacidade de aceitar ou não, na nossa capacidade de envolvimento com uma causa maior e mais justa para todos.
E quando se fala em baixar a maioridade penal, muita gente pula, como se isso significasse necessariamente colocar mais gente pobre e desesperançada na cadeia. Sim, este é mesmo um risco no Brasil "de hoje"; mas pode não ser no Brasil de amanhã, que amadureça esta ideia, que discuta largamente este assunto, e que esteja unido em nome da segurança de todos. Segurança não só contra os bandidos, mas contra a injustiça e a desigualdade que, muitas vezes, geram o crime.
O que a gente não pode, é continuar defendendo o menor de idade como se ele fosse uma instituição. E, em nome desta defesa cega, o joio continuar se misturando ao trigo e causando a barbárie. E também seria bom delimitar bem a diferença entre ser criança e ser adulto, porque o adolescente está confortavelmente instalado em uma situação que lhe permite ser as duas coisas, a depender da circunstância: então ele é adulto para votar, fazer sexo, ter conta bancária e cartão de crédito, mas é criança quando se trata de ser responsável por seus atos bárbaros?
Não se trata de demonizar todos os menores infratores, mas de buscar uma legislação mais justa inclusive para separar os ladrões de galinha dos criminosos hediondos que desconhecem a noção de humanidade... criminosos sem salvação no mundo dos homens, porque eles existem! Acreditar que todos os adolescentes do mundo são anjos levados ao crime pelo próprio mundo é um argumento que beira a infantilidade. E se tem uma coisa que não rima com crime... é infância.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Frase do dia

"Conheço muitos que não puderam, quando deviam, porque não quiseram, quando podiam".

                                                                                                        François Rabelais


sábado, 4 de maio de 2013

Eu sou a nova Maria Magdá

Lembro que na faculdade de jornalismo tínhamos uma colega na faixa dos 40: era a Maria Magdá, que tinha uma cicatriz deixada por um piercing no nariz, numa época em que piercing era coisa inexistente no Brasil. Magdá era uma mulher “prafrentex”, moderna, alternativa, como se vê pelo piercing que ela já havia deixado de usar. Estava em sua segunda faculdade e cursava jornalismo por prazer: o que eu achei o máximo! Depois da formatura nunca mais a vi, e sempre imagino como ela deve estar hoje, tantos anos passados.

E ai aconteceu que eu, que jamais pensei ter tempo, grana ou energia para encarar cinco anos em outra faculdade... eu, que nem lembrava mais o que vem a ser “meiose” e “mitose”... well... desisti dos cursos de pós-graduação e voltei pra estaca zero dos bancos escolares.
E agora tenho aula de genética, que adoro, e me faz lembrar das aulas de ciências, no primeiro grau, e de biologia, no segundo. Nunca entendi porque é que o nome mudava se a matéria era a mesma. E agora ela evoluiu mais ainda e virou neuroanatomia, psicofisiologia e genética. Que chique, hein? Eu, mulher das letras, entrei para o clube da Saúde!
A turma é eclética e tem de tudo, mas sinto um prazer especial em ser amiga das colegas mais jovens. Elas são jovens mesmo, muitas poderiam ser minhas filhas; eu olho para elas e vejo um pouco da moça que fui, vejo as minhas sobrinhas tão queridas e que também já passaram dos 30; vejo as filhas que não tive e a juventude que, graças aos Céus, ainda guardo como um luxo dentro de mim.
Conviver com jovens é uma das melhores coisas da vida: eles nos contagiam com uma alegria genuína e com uma ingenuidade que nos traz de volta a pureza das coisas mais simples. Dia desses, encontrei 12 reais no chão e tive pena da pessoa que, provavelmente no ponto de ônibus, se deu conta da perda. Quando a gente tem 18 anos, 12 reais são de um valor quase inestimável...
-- Fernanda, se você tiver dúvidas com a matéria, posso estudar com você!
Volta-e-meia ouço esta frase na aula de genética e acho um barato esta generosidade que, aos poucos, a gente vai perdendo, e aí a “falta” vira uma tônica: é a falta de tempo, falta de paciência, falta de vontade tão presentes na vida adulta. O jovem não: ele tem tempo pra tudo, tem vontade de sobra e paciência com as situações desagradáveis, que muitas vezes acabam virando piada. Ele ainda não se deu conta de que o tempo é finito e de que a vida é curta mesmo para quem chega aos 90.
Minha amiga antiga, a Ludmila, perguntou se me sinto velha de volta à faculdade e cercada por meninas na flor da idade. Não, Ludmila: eu  me senti aos oito anos quando montei, com minha mais nova amiga, a Juliane, um exemplar de fita de DNA e RNA, usando jujubas e palitos de dentes.  Inclusive tirei 9 na prova porque a Juliane estudou comigo depois da aula.
Dia desses, num almoço para comemorar as boas notas, foi a Juliane mesmo quem me chamou de “alternativa” ao me comparar com a mãe, que aliás tem exatamente a minha idade. Não sei bem o que ela quis dizer com isso, mas achei graça na situação. Eu, quem diria, virei Maria Magdá... e como é que vou me sentir velha com isso?

 
Olha a Juliane aí, com a nossa fita de DNA de jujuba!

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Entrevista: André Perin Shecaira


No mundo da rua tem muito a ver com Estação Carandiru: os dois livros foram escritos por médicos e metem o dedo na ferida social que a gente prefere não ver. Enquanto o oncologista Drauzio Varela abriu as portas de um presídio gigantesco para dar voz aos detentos esquecidos pelo sistema carcerário e odiados por todo o resto, o ortopedista André Perin Shecaira fez o caminho inverso e foi para as ruas, onde descobriu aqueles que não têm casa, carteira de identidade ou expectativas. Foi a partir do trabalho voluntário junto a estas pessoas, "marginais" no sentido exato da palavra, que nasceu o livro, por enquanto vendido apenas na livraria do Cema, na Barra da Tijuca. A leitura abre nossos olhos para o que André chama de "maravilhoso mundo novo": a realidade invisível, mas tão próxima, daquela gente que preferimos fingir não ver, mas que também sente vontade de comer um bolo de aniversário; que sofre saudades; que padece culpas; se apaixona; chora de dor de dente e tem medo da Avenida Rio Branco à noite... tanto quanto você e eu.

 

Como você teve a idéia deste livro?

Na época já trabalhava com moradores de rua havia dois anos, e para mim tudo aquilo era um maravilhoso mundo novo! Tinha apreendido muito e vivenciado situações que me retiravam da minha zona de conforto, então me senti na obrigação de passar adiante o que sentia. Seria uma forma legal de promover o trabalho voluntário, mostrar uma outra face dos moradores de rua e levantar um dinheirinho para a nossa obra social.

Foi fácil escrevê-lo? Ele foi escrito em quanto tempo?

Foi muito difícil porque nunca tinha escrito nada... até fui reprovado no primeiro vestibular por causa da redação! Então foi um processo gradual e lento que demorou uns dois anos. Cresceu em doses homeopáticas.

Como você fez para escolher os casos contados e os personagens?

Cada personagem representava uma característica específica de algum aspecto peculiar sobre os moradores de rua. Os que entraram no livro foram as pessoas com quem interagi mais de perto, que me fizeram rir ou chorar, mas que também representavam a sua classe de alguma forma.

Qual era a sua expectativa antes de lançá-lo?

Difícil dizer... tinha sonhos de jovem... achei que mais gente iria conhecer este universo, que seria fácil encontrar uma editora e que quem sabe ajudaria a transformar a situação que estas pessoas enfrentam diariamente. Não foi tudo como imaginei, mas foi muito legal também. Mesmo sendo uma edição independente e só disponibilizada em uma única loja, conseguimos vender mais de quinhentos livros. Hoje, chego a sonhar que ao menos algumas destas pessoas já notem a existência destes seres, quase inexistentes para o resto do mundo.

Algum dos personagens leu? O que achou? Como reagiu?

Acredito que ninguém leu... sabem que foi escrito, mas não leram...

Você pretende escrever outros livros? Já está escrevendo algum?

É difícil, sou médico e não escritor. Antes de pensar em escrever qualquer outra coisa, tenho que promover o que já está escrito. Mas sou enrolado demais! Até hoje não sei como correr atrás de uma editora. Acho que o trabalho com o No Mundo da Rua ainda tem que ser mais explorado antes de pensar em qualquer outra coisa.

Há quanto tempo você faz trabalhos voluntários com moradores de rua e o que o motiva (ou motivou) a isso?

Há quase uma década, e tudo começou por acaso. Queria ajudar de alguma forma e tudo calhou para começar com o voluntariado junto a estas pessoas. Também acho que o fascínio e o mistério por trás deste universo me atraiu sempre. Quem nunca se assustou ou ficou curioso com o "homem do saco" que vivia no banco da praça?

Aproximar-se deles fez com que você os visse de maneira diferente?

Muita coisa mudou! Estas pessoas passaram a existir de fato para mim, antes de tudo simplesmente não os percebia... Mas é difícil dizer como eu mudei... simplesmente me sinto mais sintonizado com o todo.

O que os moradores de rua ensinaram a você?

Basicamente duas coisas: que todo ser humano tem um enorme poder de adaptação e que o homem não é diferenciado pelo seu dinheiro. Mesmo em situações sociais completamente díspares, somo todos iguais. Temos os mesmos medos, ansiedades e sonhos, apenas com valores monetários diferentes. Podemos cair nas ruas e nos tornarmos pedintes, mas continuaremos seres humanos.

Qual foi a experiência mais forte que você teve com moradores de rua?

Difícil dizer... mas uma vez levei um morador de rua em meu carro até um encontro sobre o assunto no Centro da cidade. Por algumas horas, a distância entre nós sumiu. Almoçamos, conversamos e interagimos ao longo do dia de forma bem casual. Porém ao final da tarde, eu não tinha um endereço onde lhe deixar. Senti dor nesta hora... ele realmente não tinha uma casa para aonde retornar! Só aí percebi como de fato tudo era.

Na sua opinião, o que o governo e a sociedade civil podem (ou deveriam) fazer para lidar melhor com esta questão dos sem-teto?

Não tenho uma resposta mágica. Acho que tudo começa por notar que estas pessoas existem, que não são apenas sujeira urbana. Temos que dar ouvidos para os seus problemas... As políticas públicas envolvem apenas a remoção das ruas. Lixo nós removemos, pessoas nós cuidamos...

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Erro, culpa e bate-papo com Deus

Hoje três coisas aconteceram, e como não acredito em coincidências, li nas estrelas (e na sequência dos fatos) um bilhete divino. (Estou sempre tendo a sensação de bater papo com Deus, e por mais que muita gente pense que quem diz conversar com O Todo Poderoso tem é o miolo mole, continuo ouvindo a voz Dele por aí. Veja só:)...
 
O primeiro acontecimento da série foi que pisei na bola e me desentendi com um amigo que adoro. No começo me fiz de gostosona, dizendo a mim mesma que o cara é um mala e que a discussão era culpa dele. O cara até É REALMENTE um mala, mas desta vez estava inocente na situação, então não teve jeito: tive que assumir, primeiro pra mim, e depois para ele, que SIM, a culpa era minha, era TODA minha! Pedi desculpas, mas nem a absolvição que recebi aliviou a dor na consciência: é doloroso a gente magoar quem ama.

Pronto! O dia estava arruinado; um dia que tinha tudo pra ser ótimo: todo mundo com saúde, um sol danado no céu de outono, as contas pagas, o futuro adiante, eticétera e tal. E eu ali, de farol baixo e com o coração pesado por sei lá quantos quilos de culpa e de arrependimento. Lembrei do meu amigo Luis, que uma vez falou da diferença entre as duas coisas:

-- A culpa não vale nada, é só um peso-morto. O arrependimento é o aprendizado, é a decisão de não errar novamente.

E lembrei da minha amiga super-sábia, a dra. Vera:

-- A culpa é demoníaca, só nos traz ruína e dor. Aprendizado, nenhum.

Estava pensando nestas coisas quando, à noite, recebi um mail de uma amiga que não vejo há meses: não havia notícias, nem proposta de almoço ou cafezinho, nada disso! O que havia era uma mensagem pequena e que começava assim: "Errar é humano, mas reconhecer a própria fragilidade é um dom de Deus". Imediatamente concluí: taí um recado que Jesus mandou pra mim.

Eu ainda estava diante do computador, pensando naquela mensagem, quando o interfone tocou. Era entrega do correio. Depois de dias, finalmente chegou o livro que eu havia encomendado de um sebo láááááá do interior do país:


Coincidência? Eu já falei acima... não creio em coincidências. Acho que o universo conspirou para me fazer pensar a fundo na seguinte coisa: quando a gente erra, pedir perdão e ser perdoado não é o bastante. Só o firme propósito de não incidir no erro é que é capaz de nos libertar. Morô?

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