O livro é dividido por épocas, e a primeira parte,
de 1900 aos anos 30, deixou-me a desejar. É ali que estão, por exemplo, dois
contos do maior de todos, o seu, o meu, o nosso Machado de Assis: “Pai contra
mãe” e “Pílades e Orestes”, que em minha humilde opinião não estão entre os
melhores do Machadinho. “Negrinha”, de Monteiro Lobato, “Galinha cega”, de João
Alphonsus e “Baleia”, de Graciliano Ramos, me despertaram certa revolta
interior... uma sucessão de horrores que me deixou até de mau-humor, e comecei
a ficar com raiva do livro. Afora a narrativa exemplar, não tirei nada, nadica
mesmo das histórias... só aquele mal-estar às dez e tanto da noite...
Segui em frente, rumo à segunda parte, os Anos 40 e 50, onde encontrei duas preciosidades: “Viagem aos seios de Duília”, de Aníbal
Machado, e “O peru de Natal”, de Mário de Andrade. Não sei se o organizador os colocou ali juntinhos propositadamente, mas o fato é que enquanto o
primeiro fala da morte em vida, do desperdício de uma existência por um sujeito pobre de interioridade, o segundo trata justamente do contrário:
a celebração da vida, a
delícia de estar vivo, tão pura e simples.
“Viagem aos seios de Duília” nos apresenta um
servidor público ocupado demais com as aparências e de menos com a felicidade. Chega
à aposentadoria tão repentinamente que não sabe o que fazer com a “liberdade”
inesperada. Não tem amigos, não tem amor, nem juventude de alma, nem sonhos, nem planos, nem nada... com as gavetas do espírito vazias, o jeito é correr ao passado, ignorante de que as ilusões são
quebradiças; buscar na memória uma alegria de juventude e tentar voltar pra lá,
como se fosse possível o regresso... mas não há estradas! Só
o desespero acena ali à frente... é nisso que dá ser perdulário com a alegria.
“O peru de Natal”, logo na página seguinte, é uma
conversa deliciosa com Mário de Andrade, que mais fala do que escreve: cada frase, cada palavra... monta uma história narrada aos ouvidos. Dá até vontade de pedir um café à garçonete. E quem fala
é o rapaz de 19 anos, “o doido da família, coitado!”, que resolve afastar de
casa o fantasma do pai sisudo, morto há cinco meses. É assim: ele cisma que
quer um peru de Natal e uma ceia para a pequena família, sem a presença dos
parentes habituais que só aparecem para desfrutar. O argumento simples nos rende
uma viva narrativa sobre a decisão de ser feliz, o gesto tresloucado que só “o
doido da família, coitado!”, é capaz de ter.
Fernanda, o melhor conto brasileiro é o conto do vigário...
ResponderExcluirSERGIO NATUREZA - BA
Fernanda,
ResponderExcluirContos e poesias sao tao pessoais, que e realmente dificil escolher entre tantos os melhores, nao e mesmo, principalmente sendo escolhido por apenas uma pessoa .......
E .... muitas vezes a gente tem que dar uma de doido(a), para sobreviver .....adorei o desenho da arvore que desloca do livro .... bacana.
Felicidades,
Gilda Bose
Realmente o conto do Mário de Andrade é comoventemente excepcional (dos meus preferidos) assim como este que reproduzo a seguir, que sempre me provoca comoção , a ponto de quase não conseguir lê-lo em voz alta.
ResponderExcluirSanté e axé!
Marcos Lúcio
A útima crônica
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.
O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."
Fernando Sabino
Lindo, lindo, liiiiiindo... também me emcionou, seu danado! Entrou para o clube das minhas crônicas preferidas. De que livro é?
ExcluirFernanda,
ResponderExcluirEssa e para o Marcos Lucio, me emocionei ....nao me contive ... as lagrimas simplesmente foram mais fortes ..... realmente lindo, lindo, lindo .... vou guardar esta preciosidade ..... Beijos no seu coracao.
Gilda Bose
Nossa...com gostei de ter emocionado as queridas presidenta e diretora do C.P.F.A.S., ainda que tenha sido através do grande Sabino.Obrigado ,Gilda, pela gentileza.Respondendo à talentosa blogueira:
ResponderExcluirTexto extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora do Autor.
Sinopse
"...Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, lanço um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica..."
Curtam um texto exclusivo, escrito por ele, para o 10emtudo.
SEMPRE que começo a escrever, desde menino até hoje, me sinto um principiante. Vou escrever alguma coisa que não sei o que seja, justamente para ficar sabendo. E que só eu posso me dizer, mais ninguém.
Por isso às vezes passo horas, dias à procura de uma palavra ou do fecho de uma frase. Não quero repetir as coisas já ditas, inclusive por mim, o que infelizmente as vezes acontece. Para isso tenho que desaprender o que aprendi, me livrar dos preconceitos, das ideias que me foram impostas, de tudo enfim que possa tolher a minha liberdade de expressão.
Tento a cada dia recuperar esse estado de pureza. Renascer a cada manhã. Não digo que consiga sempre, mas tento. Como se eu tivesse acabado de desembarcar neste mundo.
No mundo da literatura, desembarquei desde que me entendo por gente. Ainda menino, descobri que tinha vocação para mentiroso. Contando para os amigos alguma história que havia lido, começava a inventar, alterando o final, acrescentando personagens e episódios, modificando o enredo. Em suma, ajudando o autor.
Desde criança eu já achava que a verdade está muito além da realidade. Para mim, nossos sentidos eram fracos e deficientes, de pouco alcance: a vista devia enxergar mil quilômetros e ver através das paredes, o ouvido devia ouvir além da barreira do som.
Um dia perguntaram a Lúcio Cardoso por que ele escrevia.
- Porque não tenho olhos verdes. - respondeu o romancista mineiro.
Não é propriamente o meu caso, evidentemente ( se bem que eu também não tenha). Escrevo porque me sinto descompensado em relação à realidade que me cerca. Preciso de uma verdade fora de mim em que me agarrar, para ser do meu tamanho - nem maior, nem menor. A minha realidade interior vive abaixo do nível que me cerca. Para restabelecer o equilíbrio, num contato normal com os demais seres humanos, tenho que escrever. Como "O Tabuleiro de Damas" de meu livro com este título, que não é nem branco com quadrados pretos e nem pretos com quadrados brancos e sim de outra cor, com quadrados pretos e brancos; assim também, a recriação da realidade pela imaginação, através da linguagem escrita, é a maneira que tenho de me comunicar. Vivo para escrever, escrevo para sobreviver.
Santé e axé
M.L.