domingo, 5 de abril de 2015

Vão-se os dedos, ficam os anéis

Não tem jeito, não tem: ou a gente se desapega, ou o mundo se encarrega de acabar com a gente, mesmo que a miopia não nos permita enxergar que, uma vez apegados, nos tornamos algo muito próximo das nossas propriedades e estamos longe de sermos realmente pessoas, e muito menos livres.

Passamos a vida construindo prisões para nós mesmos, sem perceber. Cada decisão equivocada, um tijolo. Cada atitude de aprisionar o outro, um tijolo. Cada gesto de posse em relação a qualquer coisa, um tijolo...

A vida é movimento, é constante ir, esvaziar, fluir, passar. A finitude está em tudo para nos provar isso todos os dias; nós é que nos recusamos a entender esta mensagem essencial.

Não sei como era no passado, não sei portanto se a situação está pior, o que posso dizer é que nestes tempos que vivemos, a necessidade de posse está se transformando em pandemia. Será um resultado natural do capitalismo? Do individualismo que é marca de como as relações de estabelecem, mesmo nas "melhores famílias"? Será também consequência da (falta de) educação das novas gerações, criadas pela TV, pelas babás despreparadas e pela escola que não dá conta de tudo, já que pais e mães trabalham excessivamente e não têm tempo para conversar e ensinar os filhos?

São muitas as razões capazes de justificar a necessidade de posse, inclusive mesmo o traço pessoal, que vem no sangue.

Tem havido uma distorção tão grande no inconsciente coletivo, que o essencial está trocando de roupa... e vestindo uma fantasia perigosa, transformando os afetos em doença.

As doenças afetivas estão nos relacionamentos nutridos à base de ressentimento, costume, dependência emocional, amargor e até mesmo ódio... mas dos quais as pessoas não se livram, não se desfazem, e apenas por razões atreladas à raiz de um sentimento de posse: culpa, medo, preguiça, egoísmo.

Pessoas vêm e vão nas nossas vidas e delas também, e isso faz parte do ciclo natural da existência. Seja por morrerem ou por continuarem vivendo, um dia elas se vão, ou nós mesmos é que nos vamos, porque ninguém nasceu colado a ninguém, ninguém é dono de ninguém, tudo na vida é uma passagem.

Dói encarar esta verdade? É, eu sei que pode doer sim... mas a liberdade é isso: existe escolha na liberdade, e isso não é indolor.

Mas então, deixa ir! Deixa partir, deixa ir embora, deixa acabar, chegar ao fim.  Quem tiver que ficar, ou que voltar, o fará, e não por sentença sua, mas por escolha da própria pessoa, o que lhe dará a alegria de ser escolhido.

Deixa morrer, deixa seguir, deixa esgotar... sem aferrar-se a mais nada, nem mesmo às lembranças, porque isso é uma forma de morrer também. E sem eleger símbolos da sua saudade... uma xícara, um colar, um vaso... tudo isso passível de se quebrar, de ser roubado, queimado em um incêndio na casa... foram-se os dedos, meu bem, ficaram apenas os anéis...e que importância hão de ter, além do mito de, um dia, terem pertencido a tal pessoa?

Permita-se ir, meu bem! Permita-se partir! Porque ficar, às vezes, é deixar de ser um dedo para transformar-se em um anel.





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8 comentários:

  1. Fernanda,

    Adorei seu post ..... irretocavel .........agora, que a midia tem o poder de transformar a cabeca dos outros, isso ela tem ........sendo assim cabe a cada um de nos escolher a que caminho seguir .......

    Felicidades,
    Gilda Bose

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  2. Leio seus escritos há tempos e de vez em quando você se excede. Como a Shell, lembra? "Só a Shell excede". A Fernanda abrilhanta a nossa capacidade de prosseguir nessa vida batida no liquidificador.

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  3. Ai, ai... Esses meus comentaristas que me dão tanto amooooorrrr...

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  4. Realmente seu texto está excepcional.Irretocável!Parabéns!

    Enquanto não perdemos os dedos, os anéis não têm importância seminal.


    “Fique contente com o que você tem; alegre-se com as coisas como elas são. Quando você percebe que não há nada faltando, o mundo inteiro pertence a você” – Lao Tsu

    Para os Os Ishayas do Caminho Brilhante _são um grupo internacional de pessoas que tem dedicado suas vidas à expansão da consciência, através de Atitudes de Ascensão _ nós não possuímos nada ("et pour moi aussi").. Não tenho dúvida alguma disto, pois sei que até minha vida - e de todos os mortais- não me pertence, pois assim como foi-me dada, será, algum dia, tomada. Inexoravelmente.

    Repito: não possuímos absolutamente nada... nem as memórias do que acontece na vida (lembrar é diferente de possuir); nem a música que adoramos, nem idéias, e nenhuma parte da nossa vida, nem nós mesmos, e isto é libertador.


    Muitos de nós gastamos tanta energia e tempo tentando, debalde, proteger nossa identidade de maneira a ter um sentido de existência: nossos corpos, nossas memórias, nossas idéias e inspirações, nossos relacionamentos com os outros, todas as coisas materiais como a casa, o carro, uma empresa, um emprego, algum dinheiro… etc. Tanto apego é baseado no medo de perder nossa identidade; medo de perder nossos “entes queridos”, medo de perder o ponto de referência, medo de soltar o controle.


    A verdade é que nós não possuímos nada em primeiro lugar. É somente a aparência de possuir, uma falsa identificação ou sentido para não percebermos a evidência de que somos separados e sozinhos. Uma necessidade inútil de proteger uma fantasia ilusória (sim, existe fantasia concreta, como aquelas usadas em carnaval, etc)..


    Sim, é apavorante soltar. É apavorante para a mente. A mente tem medo de enfrentar o fato óbvio de que não possuímos nada em primeiro lugar. A mente -irrealista- está feliz com o pequeno e confortável mundo pessoal que criou para si própria, onde tudo é familiar, repetitivo, esperado e conhecido. Entretanto há uma Vontade maior em jogo; É para sempre, e é a única Vontade que está sempre no comando. Esta vida nunca se destinou a nós mesmos ou ao conforto do ego.Ela se destina ao entusiasmo e à aventura. Ela se destina a ser aberta e a receber o infinito rio da Graça. Para além do nosso pequeno mundo devaneantemente perfeito está um Universo que é espaçoso e atemporal, que é infinito e eterno. E é deslocando a atenção da nossa identidade limitada que nós podemos finalmente ter nossa atenção disponível para a maior parte do universo, a parte infinita de nossa identidade verdadeira.


    É libertador viver sem medo de perder qualquer coisa, reconhecendo que não possuímos nada em primeiro lugar.Basta lembrar das inevitáveis e/ou irreversíveis perdas materiais, emocionais, etc. É libertador, viver com potencial infinito ao invés das crenças limitantes sobre nós mesmos. É libertador entregar-se a uma Vontade maior e deixá-la tomar e exercer todo o controle.


    Ao fim e ao cabo, aprenderemos , alguns de nós, a valorizar mais o que (ainda) temos , em vez de chorarmos inutilmente pelo que já perdemos...pois perder é parte inseparável deste jogo existencial.

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  5. Marcos Lucio,

    Adorei a frase do Lao Tsu .......UAU......

    Felicidades,

    Gilda Bose

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  6. Gilda, querida...como sempre incentivadora, presente e simpaticíssima.Obrigado.
    Abração, santé e axé!!!

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  7. Querida Fernanda
    Estamos carentes...13 dias sem uma só nova coluna?! Preguiça ou falta de tempo?
    Abraço
    16/4/2015

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