terça-feira, 12 de janeiro de 2016

David Bowie e Oliver Sacks ensinam a não temer a morte





Não poderia ser diferente! As últimas gotas de sangue nas veias de David Bowie só poderiam mesmo ser gastas para cantar e gravar um clipe. Fiquei emocionada ao ver o esforço que Bowie, terminal, empreendeu para viver a vida até o fim, chupar a laranja até o bagaço, incluindo o caroço.

A verdade de "Lazarus", impregnada em cada nota, em cada palavra, em cada dobra dos lençóis, em cada ruga no rosto, na dor e na emoção de Bowie ultrapassa os limites da física e vaza pela tela do I-pad. Contagia-nos porque não se trata de um clipe: é a verdade, nua e crua que se estampa frente aos nossos olhos. Ali está um homem cheio de cicatrizes, e no momento em que o assistimos, já canta do céu.

"Lazarus" é um hino à vida. Um aviso, também, deixado a todos nós por alguém que, de tanta sede de viver, jamais se conformou em ser um só. Performático, andrógino, bissexual, metamorfose constante, cantor, ator, produtor, ousou ser muitos em um só e mal coube nesta vida. E avisa-nos, com este clipe derradeiro, que todos os instantes da existência são de inestimável valor.

Tanto quanto Bowie, Oliver Sacks, famoso neurologista inglês morto em agosto último devido a um câncer, foi um sábio amante do viver. Sacks também espalhou-se por outras áreas e foi ainda professor e talentoso escritor capaz de transpor diversas deficiências físicas para o papel de modo muito singular, poético e compreensível para o leigo: falo de pérolas como "O homem que confundiu sua mulher com um chapéu", "Tempo de despertar" e "Vendo vozes", só pra citar alguns. E que, como vimos no final, foi não somente um mestre na arte de viver, mas também na arte  de morrer.

Ao contrário de Bowie, Sacks não era uma estrela das multidões: reservado por natureza, e marcado pela rejeição familiar devido à sua homossexualidade, ganhou maior popularidade fora do círculo acadêmico em fevereiro do ano passado, quando o jornal "The New York Times" publicou uma carta sua  respeito de seu câncer terminal.

A carta era um verdadeiro agradecimento à vida! O reconhecimento do medo, mas também da certeza de haver vivido intensamente.

Bowie e Sacks me ensinaram que a melhor maneira de não temer a morte é viver a vida com a maior consciência e desejo que formos capazes. E eu lhes agradeço por isso.


Leia, a seguir, a carta de Sacks:

"Há um mês, eu sentia que estava em boas condições de saúde, robusto até. Aos 81 anos, ainda nado uma milha por dia. Mas a minha sorte acabou – há algumas semanas, descobri que tenho diversas metástases no fígado. Nove anos atrás, encontraram um tumor raro no meu olho, um melanoma ocular. Apesar da radiação e os lasers que removeram o tumor terem me deixado cego deste olho, apenas em casos raríssimos esse tipo de câncer entra em metástase. Faço parte dos 2% azarados.

Sinto-me grato por ter recebido nove anos de boa saúde e produtividade desde o diagnóstico original, mas agora estou cara a cara com a morte. O câncer ocupa um terço do meu fígado e, apesar de ser possível desacelerar seu avanço, esse tipo específico não pode ser destruído.
Depende de mim agora escolher como levar os meses que me restam. Tenho de viver da maneira mais rica, profunda e produtiva que conseguir. Nisso, sou encorajado pelas palavras de um dos meus filósofos favoritos, David Hume, que, ao saber que estava terminalmente doente aos 65 anos, escreveu uma curta autobiografia em um único dia de abril de 1776. Ele chamou-a de “Minha Própria Vida”.

Estou agora com uma rápida deterioração. Sofro muito pouca dor com a minha doença; e, o que é mais estranho, nunca sofri um abatimento de ânimo. Possuo o mesmo ardor para o estudo, e a mesma alegre companhia de sempre.”
Tive sorte de passar dos oitenta anos. E os 15 anos que me foram dados além da idade de Hume foram igualmente ricos em trabalho e amor. Nesse tempo, publiquei cinco livros e completei uma autobiografia (um pouco mais longa do que as poucas páginas de Hume) que será publicada nesta primavera; tenho diversos outros livros quase terminados.

Hume continua: “Eu sou… um homem de disposição moderada, de temperamento controlado, de um humor alegre, social e aberto, afeito a relacionamentos, mas muito pouco propenso a inimizades, e de grande moderação em todas as minhas paixões.”
Aqui eu me distancio de Hume. Apesar de desfrutar de relações amorosas e amizades e não ter verdadeiros inimigos, eu não posso dizer (e ninguém que me conhece diria) que sou um homem de disposições moderadas. Pelo contrário, sou um homem de disposições veementes, com entusiasmos violentos e extrema imoderação em minhas paixões.

E ainda assim, uma linha do ensaio de Hume me toca como especialmente verdadeira: “É difícil”, ele escreveu, “estar mais separado da vida do que eu estou no presente.”
Nos últimos dias, consegui ver a minha vida como a partir de uma grande altitude, como um tipo de paisagem, e com uma sensação cada vez mais profunda de conexão entre todas as suas partes. Isso não quer dizer que terminei de viver.

Pelo contrário, eu me sinto intensamente vivo, e quero e espero, nesse tempo que me resta, aprofundar minhas amizades, dizer adeus àqueles que amo, escrever mais, viajar se eu tiver a força, e alcançar novos níveis de entendimento e discernimento.
Isso vai envolver audácia, clareza e, dizendo sinceramente: tentar passar as coisas a limpo com o mundo. Mas vai haver tempo, também, para um pouco de diversão (e até um pouco de tolice).

Sinto um repentino foco e perspectiva nova. Não há tempo para nada que não seja essencial. Preciso focar em mim mesmo, no meu trabalho e nos meus amigos. Não devo mais assistir ao telejornal toda noite. Não posso mais prestar atenção à política ou discussões sobre o aquecimento global.
Isso não é indiferença, mas desprendimento – eu ainda me importo profundamente com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com a crescente desigualdade social, mas isso não é mais assunto meu; pertence ao futuro. Alegro-me quando encontro jovens talentosos – até mesmo aquele que me fez a biópsia e chegou ao diagnóstico de minha metástase. Sinto que o futuro está em boas mãos.

Nos últimos dez anos mais ou menos, tenho ficado cada vez mais consciente das mortes dos meus contemporâneos. Minha geração está de saída, e sinto cada morte como uma ruptura, como se dilacerasse um pedaço de mim mesmo. Não vai haver ninguém igual a nós quando partirmos, assim como não há ninguém igual a nenhuma outra pessoa. Quando as pessoas morrem, não podem ser substituídas. Elas deixam buracos que não podem ser preenchidos, porque é o destino – o destino genético e neural – de cada ser humano ser um indivíduo único, achar seu próprio caminho, viver sua própria vida, morrer sua própria morte.
Não posso fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Amei e fui amado; recebi muito e dei algo em troca; li, viajei, pensei e escrevi. Tive uma relação com o mundo, a relação especial de escritores e leitores.

Acima de tudo, fui um ser senciente, um animal pensante nesse planeta maravilhoso e isso, por si só, tem sido um enorme privilégio e aventura.

3 comentários:

  1. Excelentes seu post, o video e a carta do Sacks.Ainda estou vivendo, com absoluta aceitação e conforto espiritual, o luto pelo falecimento recente(o certo seria alívio) de uma querida amiga, que teve quatro metástases...e, claro, sofreu bastante. Mais uma vez pude constatar que todas as pessoas que conheci (não foram poucas, lamentavelmente) em situações limite, se arrependeram de terem sido tão severas, de não terem tido jogo de cintura, de não terem sabido relevar, ou de acreditarem em demasia em "moral", religião, opiniões e/ou preconceitos e tantas amarras desnecessárias.
    Para a maioria dos humanos, a consciência só chega quando a fatídica pousa ou pesa a mão sobre os ombros já debilitados. Com poucas semanas de vida, ou visto à luz da morte, o que mais importa, de fato, adquire sua verdadeira valia, e começamos a aprender a separar o joio do trigo, com nossa percepção mais iluminada (estamos , neste caso, nos preparando para voltar à luz). Ato contínuo, caem os véus da ilusão para a maioria incauta, fantasiosa e imatura que julgava-se (debalde) dona das coisas, dos instantes, e dos outros. Tolinhos, tadinhos... A morte só faz perder a inútil ilusão de que tudo era nosso e, pior, para sempre.Lego , fatal e eterno engano. Não somos donos nem da nossa vida, que, muitas vezes, tem vida própria e à nossa revelia.
    Na verdade , segundo Balzac, o homem morre pela primeira vez, quando perde o entusiasmo. Pior do que morrer é deixar morrer ou não alimentar em nós o que nos interessa, apesar de ainda vivos. Como dela é impossível escapar, ainda creio, convictamente, que devemos lutar - com ética e bom senso - para atingir os níveis máximos do bem estar (cada qual à sua peculiar maneira) durante o tempo que nos resta.
    Pensar na possibilidade ou na inevitabilidade dela, considero um trampolim, uma injeção de ânimo para fazer , sentir, apreciar, gozar, ajudar, e acontecer antes que seja tarde.
    Para finalizar os singelos trabalhos, recorro aos que descobriram a roda antes de nós rs.

    A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais.
    Epicuro

    Nisto erramos: em ver a morte à nossa frente, como um acontecimento futuro, enquanto grande parte dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte.
    Sêneca


    Se quiseres poder suportar a vida, fica pronto para aceitar a morte.
    Sigmund Freud


    Feliz serás e sábio terás sido se a morte, quando vier, não te puder tirar senão a vida.
    Francisco de Quevedo

    Santé e axé!

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  2. Se foi um Deus que fez tudo, Ele nos deu consciência de que morreremos não para nos torturar, mas que nos preparemos para esse momento.

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  3. UM SENTIMENTO MUITO ESPECIAL E PROFUNDO ME DIZ QUE A VIDA CONTINUA.APÓS A MORTE DO CORPO O QUE CULTIVAMOS NESSA VIDA SE LIBERTA. E VAMOS PARA ONDE FORMOS ATRAÍDOS.

    SERGIO.

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