Fico sabendo da notícia: professora manda um bilhete para mãe da aluna negra, bem pequenininha, contando que a menina é alvo de piadas na escola por causa do cabelão armado. A professora termina o bilhete dando à mãe a ideia de fazer um "relaxamento" para alisar os fios e baixar o volume.
A mãe, indignada, não só se recusa a mudar o cabelo da filha como publica a história no Face, com foto e tudo.
Eu vi a foto, e a menina é linda, assim como seu cabelão. Se fosse minha filha, eu não alisava nem por decreto.
Minha primeira reação ao saber do caso foi achar a professora uma despersonalizada infeliz. Mas depois de pensar um pouco, concluí que é claro que ela agiu com a melhor das boas intenções. Quis proteger a menina das piadas dos coleguinhas. Porque a gente sabe que criança é um bicho terrível quando resolve pegar alguém pra Cristo, né?
O problema é que, como se sabe, o inferno está cheio de boas intenções, e em vez de proteger a "diferente" tornando-a igual e pasteurizada, o ideal seria que a escola (e no caso a professora, que representa a escola) deveria ensinar aos "iguais" que o "diferente" também pode ser lindo.
Mas não. Infelizmente a escola não ensina o aluno a pensar...
Neste caso, por exemplo, a professora só enxergou a alternativa de recorrer à mãe e pedir para alisar o cabelo da menina, sem perceber que esta sua atitude significa menosprezar a origem afro e toda a beleza que aí reside, alimentar o racismo e a suposta inferioridade da raça negra, perpetuar a vergonha de ser quem se é e o desejo impossível de ser outra coisa.
A professora perdeu a chance de ensinar aos "iguais" uma ótima lição de respeito e de valorização do próximo. E de ensinar à "diferente" uma boa aula de autoestima.
E de ensinar a todos da sala de aula que todos temos o direito de ser quem somos. Sem ser preciso mudar nada. Sem alisar, sem emagrecer, sem ficar rico, sem ficar na moda, sem ter que agradar, sem ter que pagar nenhum tipo de ingresso para a maioria. Sem ter que ficar igual, ou ter que pensar igual. Sem ter que abrir mão de sua originalidade!
A professora ainda não aprendeu, mas pobre dela: ninguém a ensinou quanta liberdade existe naquele cabelão!
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015
Mulher rodada
Queria ter saído, ontem, no Bloco das Mulheres Rodadas. Ficou para o ano que vem.
Veja você que eu, que sempre achei ridículo homem vestido de mulher no Carnaval, justamente na tarde do sábado anterior à festa, me vi dentro do meu carro, cercada por uma horda de rapazes bem jovens, todos fantasiados de Minnie (a namorada do Mickey)!
Entrei na onda da brincadeira e enquanto eu sorria para a rapaziada, achando tudo o maior barato, a coisa subitamente mudou... a turma começou a bater na lataria, com força, e gritar, "dinheiro! dinheiro!"...
Meu co-piloto, mais esperto que eu, me avisou logo:
-- Pisa no acelerador e vamos sair daqui!
Foi quando dei por mim e vi que aquelas Minnies fofas não estavam sorrindo... elas estavam arreganhando os dentões, bem ao estilo predador para o queijo... e o queijo, na dita situação, éramos nós, dentro do carrinho que não é blindado nem lá grandes coisas, nesta cidade que já virou Terra de Marlboro faz é tempo...
Acelerei o quanto pude, enquanto meu coração tentava sair pela goela, e fui abrindo caminho em meio às Minnies batedoras de carteira. Com a graça de Deus conseguimos sair dali.
Foi o bastante para eu me enclausurar em casa durante a "festa".
Mas do Bloco das Rodadas eu gosto. Aliás, quero uma camiseta!
Sabe, acho maravilhoso a gente poder abrir a boca pra gritar contra o machismo. Penso nas tantas mulheres submetidas aos horrores da ignorância machista que ainda impera no mundo, e não só em absurdos como o ritual de passagem ainda praticado no Oriente Médio e na África, de retirada do clitóris, que impede o prazer sexual. E os casamentos forçados? E o impedimento ao estudo ou à religião? E a falta de liberdade para qualquer coisa? E a condenação ao afastamento da família?
E a sentença à infelicidade, que muitas mulheres, mesmo aqui, no Brasil, são submetidas por homens machistas e estúpidos, carrascos ou matadores, que exploram a dignidade de suas companheiras dentro de casa durante anos, impunemente?
E quando um homem posta na Internet que "não merece mulher rodada"?
E logo eu, que sempre achei ridículo homem vestido de mulher no Carnaval, desta vez achei lindo: homem vestido de mulher no Bloco das Mulheres Rodadas teve tudo a ver porque teve significado, foi político, não foi simplesmente brincadeira gratuita, muito menos motivo para soltar a franga de uma violência íntima e viral.
Mulheres Rodadas! Ano que vem eu vou!
Veja você que eu, que sempre achei ridículo homem vestido de mulher no Carnaval, justamente na tarde do sábado anterior à festa, me vi dentro do meu carro, cercada por uma horda de rapazes bem jovens, todos fantasiados de Minnie (a namorada do Mickey)!
Entrei na onda da brincadeira e enquanto eu sorria para a rapaziada, achando tudo o maior barato, a coisa subitamente mudou... a turma começou a bater na lataria, com força, e gritar, "dinheiro! dinheiro!"...
Meu co-piloto, mais esperto que eu, me avisou logo:
-- Pisa no acelerador e vamos sair daqui!
Foi quando dei por mim e vi que aquelas Minnies fofas não estavam sorrindo... elas estavam arreganhando os dentões, bem ao estilo predador para o queijo... e o queijo, na dita situação, éramos nós, dentro do carrinho que não é blindado nem lá grandes coisas, nesta cidade que já virou Terra de Marlboro faz é tempo...
Acelerei o quanto pude, enquanto meu coração tentava sair pela goela, e fui abrindo caminho em meio às Minnies batedoras de carteira. Com a graça de Deus conseguimos sair dali.
Foi o bastante para eu me enclausurar em casa durante a "festa".
Mas do Bloco das Rodadas eu gosto. Aliás, quero uma camiseta!
Sabe, acho maravilhoso a gente poder abrir a boca pra gritar contra o machismo. Penso nas tantas mulheres submetidas aos horrores da ignorância machista que ainda impera no mundo, e não só em absurdos como o ritual de passagem ainda praticado no Oriente Médio e na África, de retirada do clitóris, que impede o prazer sexual. E os casamentos forçados? E o impedimento ao estudo ou à religião? E a falta de liberdade para qualquer coisa? E a condenação ao afastamento da família?
E a sentença à infelicidade, que muitas mulheres, mesmo aqui, no Brasil, são submetidas por homens machistas e estúpidos, carrascos ou matadores, que exploram a dignidade de suas companheiras dentro de casa durante anos, impunemente?
E quando um homem posta na Internet que "não merece mulher rodada"?
E logo eu, que sempre achei ridículo homem vestido de mulher no Carnaval, desta vez achei lindo: homem vestido de mulher no Bloco das Mulheres Rodadas teve tudo a ver porque teve significado, foi político, não foi simplesmente brincadeira gratuita, muito menos motivo para soltar a franga de uma violência íntima e viral.
Mulheres Rodadas! Ano que vem eu vou!
sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015
Livre (do passado)
Chegar ao grau máximo de acabar com a própria vida e
dar cabo de si exige um nível muito alto de coragem. Para quem não dispõe de
tamanha valentia, há outras maneiras eficazes de, literalmente, chegar ao mesmo
fim, e uma delas é manter os olhos pregados no passado.
O roteirista fez o melhor que pôde, mas o filme está longe de alcançar a profundidade dos questionamentos da autora, que divaga sobre o drama de uma perda tão grande, de uma solidão tão absoluta, de um desespero que só a morte é capaz de nos lançar, e do qual nos tornamos cativos.
Dito isto, conto que meses atrás, passeando por uma
livraria, comprei o livro “Livre”, da americana Cheryl Strayed, que conta a
história de quando ela, a autora, perdeu a mãe aos 21 anos e, junto, perdeu também o rumo na
vida durante quatro anos. Sofreu tanto que acabou sem o casamento,
as referências e a esperança no futuro. E, quatro anos depois, reencontrou a fé na vida ao fazer uma
caminhada de quase dois mil quilômetros, sozinha, através de uma trilha montanhosa
na costa oeste dos Estados Unidos.
O livro ficou em minha estante e talvez tivesse sido
doado sem ser lido se o filme não estreasse com a atriz Reese Witherspoon no
papel principal. Passei a gostar de Reese desde que a vi em “Johnny e June”, de
2005, com Joaquin Phoenix. Então resolvi ler a história escrita por Cheryl
antes de conferi-la nas telas.
O que vale no filme é o desempenho de Reese. No
mais, o livro dá de dez não só porque é mais detalhado e porque nele a imaginação
do leitor entra como coautora. Mas também porque no livro a gente tem a
sensação de que Cheryl está realmente conversando com a gente. Ela escreve de
um jeito tão coloquial, tão íntimo, tão transparente, que chega a ser
uma confissão. Sem falar nas partes engraçadas, que não são poucas... porque Cheryl não está nem aí para as aparências ou para o que vão pensar dela.O roteirista fez o melhor que pôde, mas o filme está longe de alcançar a profundidade dos questionamentos da autora, que divaga sobre o drama de uma perda tão grande, de uma solidão tão absoluta, de um desespero que só a morte é capaz de nos lançar, e do qual nos tornamos cativos.
Mas o maior foco de toda esta história é justamente
a volta por cima, e daí vem o título do livro e do filme: “Livre”.
No entanto, tudo tem a sua hora, inclusive deixar de
sofrer. A dor existe para ser vivenciada até a última gota. E então a escalada
rumo ao renascimento pode ser iniciada, e para isso precisamos deixar o passado
para trás. O que Cheryl faz, sem perceber, é exatamente isso: forçada a manter
o foco em sua sobrevivência naquela duríssima caminhada solitária, ela deixa de
pensar 24 horas por dia em seu passado e consegue abrir os olhos para a
maravilha da vida. Deixa de ser mártir de sua história pessoal para sobreviver. E não é só assim que sobrevivemos?
Terminei o livro e conclui que todos passamos por
nossas perdas, e no final das contas todos encontramos um modo de lidar com o desafio
de superá-las. Sei de um senhor que perdeu a filha em um acidente de carro e
isolou-se no interior, ele e um mestre-de-obras: em poucos meses haviam construído
uma casa bem grande juntos. O dois, sozinhos. Ele trabalhava das seis da manhã às dez da
noite, e naqueles meses todos, quando a mulher e os outros filhos iam visitá-lo,
jamais falou sobre seu luto. Depois da casa pronta, viveu sozinho nela por um tempo,
e quando sentiu-se em paz, voltou para a família.
Sim, as perdas fazem parte da vida e temos que
aprender a vencê-las. Aprender a encontrar um band-aid para a alma, de modo que deixemos o passado para trás e possamos seguir adiante com os pés no chão e a mente no infinito: um desafio cujo
prêmio é o nosso renascimento.segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015
Birdman, Grandes olhos e o alter ego de cada um
No sábado fui ver "Birdman", do mexicano Alejandro Gonzáles Iñarritu, o mesmo do excelente “21 gramas”, e fiquei pensando que todos nós somos um pouco Birdman, e é por isso que este filme é tão bom! Iñarritu acertou em cheio mais uma vez, agora ao tratar do conflito de um homem entre o que ele é excessivamente e o que ele é em menor parte. E estas duas naturezas, ambas verdadeiras e pulsantes neste homem, lutam para se impor e sobreviver.
Em suma, o personagem (vivido pelo impressionante
Michael Keaton), um ator de cinema
decadente, que um dia incorporou o super-herói de sucesso chamado Birdman, deseja desligar-se desta
imagem enlatada e tornar-se um respeitado ator de teatro.
Ele tem talento para tanto, mas... quando conquista
seu desejo... seu alter-ego, o Birdman, o super-herói irritadinho, um homem-pássaro que detesta teatros da Broadway e adora cinemão com tiros e sangue no estilo catchup, vence a parada.
E não é assim com a gente, na vida real? Ninguém aqui é Hamlet, mas não estamos sempre decidindo entre "ser e não ser, eis a questão"? Decidindo sobre como agir ou não agir? E a cada decisão que tomamos, a cada tom de voz, a cada estupidez ou gentileza, a cada atitude ética ou não, melhor ou pior para nós mesmos ou para os outros, a cada cigarro que decidimos fumar ou não fumar... a cada esquina que dobramos ou não dobramos... não escolhemos entre um ou outro "personagem"? Não optamos por um ou outro "roteiro" para a nossa existência, com uma diferente possibilidade de "fim"?
Realmente não entendi porque o filme foi classificado como “comédia”,
porque ele não tem nada de engraçado! É um drama tratado de forma irônica e
inteligente, bonito de se ver porque a luta interna deste homem, consigo mesmo,
é dura de ser travada, e nos mostra que de nada adianta o esforço de anos a fio para tentarmos nadar contra nossa própria corrente: somos o que somos,
e o melhor que fazemos é lapidar nossa própria natureza.
No domingo fui ver o tal “Grandes Olhos”, de Tim Burton,
que traz às telas a história da pintora Margareth Ulbrich, que ao casar-se com
Walter Keane, nos anos 50, tornou-se Margareth Keane e, ao assinar simplesmente
“Keane” nas telas que pintava, e aceitar que seu marido as comercializasse
fingindo ser ele o autor, acabou vivendo à sua sombra por dez anos: ela
pintava, ele fazia um tremendo sucesso.
Também classificado como comédia, sem sê-lo, o filme
causa incômodo ao mostrar a submissão feminina em um tempo que não vai tão
longe assim. “Por que ela não reage?” a gente se pergunta. Mas é preciso
contextualizar para entender.
E ao olhar de perto o sr. Walter Keane, aquele homem
sedutor e inteligente, que era um agente imobiliário de sucesso e sonhava ser
artista, embora não tivesse talento para tanto... e que mentia tão bem que
acabava acreditando em suas próprias invenções... fica muito evidente, ali na
tela, o quanto é perigoso deixar-se levar pela fantasia e acreditar naquilo que escolhemos acreditar: se é isso que Walter faz, ao crer que os quadros são realmente dele, é o que Margareth também faz, ao convencer-se de que seu marido era boa pessoa e que ela estava correta ao ceder a autoria de seu trabalho a ele.
Há casos em que o
alter ego deve ser amordaçado. Um deles é quando a vaidade e a exploração entram em cena.
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