Cheguei em casa e anunciei, eufórica:
-- Vou acampar no pé do Pico da Bandeira e ver o sol
nascer lá de cima!
Minha mãe riu, minhas irmãs avisaram que era
roubada.
-- Fernanda, isso não é programa pra uma urbanoide
como você.
Mas sempre fui uma urbanoide teimosa e aventureira,
e de nada adiantaram os avisos.
Muitos anos depois, minha enteada, na flor da idade,
vem me dar a boa notícia:
-- Vou acampar nas férias!
Eu não quis ser estraga-prazeres, mas foi
inevitável... e pus-me logo a contar sobre aquela experiência antropológica de tanto
tempo atrás. A única vez em que caí na esparrela de ir passar um feriadão no
meio do mato das Gerais, pra curtir a natureza bem de pertinho.
Como era a minha primeira vez e eu estava achando o máximo, fui em grande estilo.
Levei um saco de dormir maravilhoso, fofo e quente, que peguei emprestado com uma amiga,
o casacão de couro forrado do meu pai e uma mochila que o grupo todo,
formado por exatas 24 pessoas experientes em acampamento, achou grande demais.
Na verdade era uma mala... mas como eu poderia
levar meu travesseiro, meu roupão rosa choque que ia até os pés, meu livro, meu
rádio de pilhas (grande) e minha nécessaire cheia de cremes e maquiagens numa reles mochilinha?
Chegamos ao nosso destino às dez da noite. Tudo
escuuuuro... e fomos montar a barraca onde eu dormiria com mais duas amigas. Já achei um saco logo de cara. Montar barraca?! Ai que preguiça! Ao
lado da minha cama, digo, meu saco de dormir, botei a tal necessaire cheia de
cremes, fazendo a vez de criado-mudo. Precisei dar um ar doméstico ao ambiente
pra combater a sensação de estar no meio do mato total.
Barraca montada... nada pra fazer naquele
fim-de-mundo. O barato era sentar perto da fogueira pra ver o céu, o que me cansou antes dos primeiros cinco minutos e fez doer o meu pescoço. Além do mais, sou míope. A turma estava curiosa a respeito dos animais que veríamos, soltinhos da silva, em seu habitat natural. Lembro de pensar que bicho, pra mim, é lindo nos documentários do Discovery. Fiquei apreensiva. E se entra um jacaré na barraca? E não me venha com esta de que não existe jacaré em Alto Caparaó, porque tudo é possível nesta vida!
Foi quando caiu a ficha e vi que eu estava finalmente acampando.
Aaaaaaai meu Deus... lembrei da minha casa. Bateu a consciência: “O que é que
eu tô fazendo aqui?”, e foi aí que pela primeira vez na vida tomei um Lexotan,
que sempre carreguei na bolsa para uma eventual necessidade. Fui dormir pra
esquecer, preocupada em ficar com vontade de fazer xixi no meio da noite. Pensei que deveria ter pedido emprestado ao meu avô o penico que ele guardava embaixo da cama para um caso de emergência noturna.
No dia seguinte acordamos cedo porque o sol bateu
forte logo cedinho no “teto” da barraca azul e amarela. O dia passou lento e
lindo lá no chamado “Terreirão”, muitas barracas já montadas e vários grupos
diferentes confraternizando com a natureza. Tratei de fazer amizade com uns
hippies e passei o dia fazendo o que mais gosto, ou seja, conversando com Deus
e todo mundo. Lá pelas tantas, hora do banho! Atravessei o camping usando meu
roupão rosa e carregando a nécessaire, rumo ao banheiro. Lembro da cara
incrédula do povo, me vendo passar. E aí quem levou o choque fui eu: água fria,
o chuveiro era um cano, não havia portas nem azulejos nas paredes... um frio
desgraçado, privacidade zero, conforto nenhum! E cobra, será que tinha? Nem precisava, porque um sapo já me faria fugir dali pelada mesmo.
-- Banho
gelado?! Nem morta! Só tomo banho quando chegar em casa!
Indignação total! Mas como é que não tem um banheiro
decente neste camping?!. Olhei os vasos sanitários e comecei a rezar para ter
uma prisão de ventre. E decidi que cocô, só em casa também. Então me deram o
que seria uma boa alternativa:
-- Você pode fazer como os índios e tomar banho de
rio! Pode fazer “as coisas” no meio do mato!
Até hoje não sei se era piada, mas o fato é que teve
gente que preferiu esta segunda opção. De minha parte, acho que bancar o índio
sem ser índio é bizarrice, mas entendo que há gosto para tudo nesta vida...
Às seis da tarde meu grupo foi dormir pra se
preparar para a escalada do pico, que começaria às dez da noite. À hora marcada, minha amiga me acordou. Abri
o zíper da barraca e botei o nariz pra fora. Quase congelei e decidi que o pico
que eu ia subir aquela noite era o do sono REM, pra sonhar que estava na minha cama. Minhas amigas tentaram de tudo,
mas fiquei irredutível:
-- Só saio desta barraca agora se for pra voltar pra
casa.
Elas riram incrédulas outra vez, enquanto tomei
outro Lex. E boa noite!
Acordei cedo de novo por causa do sol. Vi as gotas
de água brilhando no nylon, do lado de fora
da barraca. Fui tomar café da manhã com os hippies, que assavam pães, e
soube que havia chovido a noite toda, enquanto eu dormia como uma pedra por causa do calmante. O dia passou ao sabor do pão assado na
fogueirinha improvisada nas pedras, cigarros de palha e café. Foi gostoso, não posso negar. No meio da tarde
meu grupo começou a chegar: todos pareciam voltar da guerra. Ensopados, enlameados,
famintos, deprimidos, esgotados e frustrados. Escalaram o pico a noite toda em
meio à chuva de vento e não viram nada lá de cima, só nuvens.
Esperei melhorar o astral e pus em prática meu poder
de persuasão:
-- Isso aqui tá muito bom, tá ótimo, mas v´ambora
daqui amanhã mesmo! O feriadão vai ser legal lá no Rio, aquela cidade
maravilhosa que gente do mundo inteiro quer conhecer! Mês que vem a gente volta!
No dia seguinte voltamos cedo, a tempo de pegar o
que sobrou do almoço em casa.
Minha enteada urbanoide ouviu a história toda às
risadas e fez como eu, no passado: fincou o pé.
-- Vou passar uma semana inteira lá no camping! Vai
ser "manero"!
E concluí, mais uma vez, que a gente só aprende
mesmo nesta vida... entrando nas próprias furadas. E aí eu é que tive que rir,
imaginando a pobrezinha tendo que escolher entre a moita e a privada do camping.
Tadinha dela, mas fazer o quê?
Uma das companheiras de barraca, meus amigos hippies e eu!