sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Livre (do passado)

Chegar ao grau máximo de acabar com a própria vida e dar cabo de si exige um nível muito alto de coragem. Para quem não dispõe de tamanha valentia, há outras maneiras eficazes de, literalmente, chegar ao mesmo fim, e uma delas é manter os olhos pregados no passado.

Dito isto, conto que meses atrás, passeando por uma livraria, comprei o livro “Livre”, da americana Cheryl Strayed, que conta a história de quando ela, a autora, perdeu a mãe aos 21 anos e, junto, perdeu também o rumo na vida durante quatro anos. Sofreu tanto que acabou sem o casamento, as referências e a esperança no futuro. E, quatro anos depois, reencontrou a fé na vida ao fazer uma caminhada de quase dois mil quilômetros, sozinha, através de uma trilha montanhosa na costa oeste dos Estados Unidos.
O livro ficou em minha estante e talvez tivesse sido doado sem ser lido se o filme não estreasse com a atriz Reese Witherspoon no papel principal. Passei a gostar de Reese desde que a vi em “Johnny e June”, de 2005, com Joaquin Phoenix. Então resolvi ler a história escrita por Cheryl antes de conferi-la nas telas.
O que vale no filme é o desempenho de Reese. No mais, o livro dá de dez não só porque é mais detalhado e porque nele a imaginação do leitor entra como coautora. Mas também porque no livro a gente tem a sensação de que Cheryl está realmente conversando com a gente. Ela escreve de um jeito tão coloquial, tão íntimo, tão transparente, que chega a ser uma confissão. Sem falar nas partes engraçadas, que não são poucas... porque Cheryl não está nem aí para as aparências ou para o que vão pensar dela.

O roteirista fez o melhor que pôde, mas o filme está longe de alcançar a profundidade dos questionamentos da autora, que divaga sobre o drama de uma perda tão grande, de uma solidão tão absoluta, de um desespero que só a morte é capaz de nos lançar, e do qual nos tornamos cativos.

Mas o maior foco de toda esta história é justamente a volta por cima, e daí vem o título do livro e do filme: “Livre”.
No entanto, tudo tem a sua hora, inclusive deixar de sofrer. A dor existe para ser vivenciada até a última gota. E então a escalada rumo ao renascimento pode ser iniciada, e para isso precisamos deixar o passado para trás. O que Cheryl faz, sem perceber, é exatamente isso: forçada a manter o foco em sua sobrevivência naquela duríssima caminhada solitária, ela deixa de pensar 24 horas por dia em seu passado e consegue abrir os olhos para a maravilha da vida. Deixa de ser mártir de sua história pessoal para sobreviver. E não é só assim que sobrevivemos?

Terminei o livro e conclui que todos passamos por nossas perdas, e no final das contas todos encontramos um modo de lidar com o desafio de superá-las. Sei de um senhor que perdeu a filha em um acidente de carro e isolou-se no interior, ele e um mestre-de-obras: em poucos meses haviam construído uma casa bem grande juntos. O dois, sozinhos. Ele trabalhava das seis da manhã às dez da noite, e naqueles meses todos, quando a mulher e os outros filhos iam visitá-lo, jamais falou sobre seu luto. Depois da casa pronta, viveu sozinho nela por um tempo, e quando sentiu-se em paz, voltou para a família.
Sim, as perdas fazem parte da vida e temos que aprender a vencê-las. Aprender a encontrar um band-aid para a alma, de modo que deixemos o passado para trás e possamos seguir adiante com os pés no chão e a mente no infinito: um desafio cujo prêmio é o nosso renascimento.


5 comentários:

  1. Recado bem dadíssimo. Certamente o livro deve ser muiiiito melhor do que o filme, acredito na blogueira. Para não macular suas reflexões indiscutíveis, não pitacarei, masssssss vou compartilhar um texto sobre perda (nascemos para perder, inclusive, a vida), que considero indefectível, se é que sei de alguma coisa rsrs. Santé e axé!!!

    Perdas
    Clécio Branco

    A vida, tal qual a concebemos, tem como único fundamento inexorável o perder em todos os sentidos. Perder é morrer em sucessivas prestações. Edgar Allan Poe diz isso de uma forma assustadora pela voz do corvo:"nunca mais!", diria ele, em tantas circunstâncias "nunca mais!" Nunca mais a nossa infância, nunca mais a juventude, nunca mais esse tempo que passou, nunca mais a primeira paixão, nunca mais os dias passados... tudo que passou é eternamente perdido. Neste momento, ainda que não queiramos pensar no fato, estamos perdendo tantas coisas que escorregam como areia por entre os dedos. Isso porque, tudo na vida se degrada sob o fluir do tempo. Neste caso, todas as perdas são necessárias e inevitáveis. E viver é o constante aprender a perder e perder-se, encontrando-se na graça do viver, em fluxos contínuos do movimento dos devires da vida.

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  2. A valentia talvez seja chegar ao grau máximo e ter a coragem de descartar essa "solução" e agüentar a barra, mesmo sabendo que sua vida vai virar um inferno, mas que tem uma Luz no fim do túnel para o carinho da mãe que ela perdeu. Como disse um amigo meu, Deus não escreve certo por linhas retas. A gente é que às vezes enxerga as linhas tortas.

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  3. Por favor corrija meu erro (sono): Deus escreve certo por linhas certas. Nós é que às vezes enxergamos as linhas tortas.
    Bj. André Anônimo Rio

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  4. Vale a pena ler a coletanea das colunas assinada pelas Dear Sugar (Cheryl Strayed) chamada "tiny beautiful things" .
    Algumas delas estao disponiveis online @ http://therumpus.net/2011/02/dear-sugar-the-rumpus-advice-column-64/
    abs
    Fagan

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