-- Não, não toca esta música porque eu tenho vontade
de chorar.
Eu digo esta frase e, logo depois, me faço a
pergunta: por que será que a gente sente tanta aversão a cair no choro de vez
em quando?
Lembro da minha infância, quando eu não suportava
ver minha mãe chorando. O motivo, um mistério pra mim nas poucas vezes em que a
vi com lágrimas nos olhos, na verdade era assim mesmo que eu queria: um
mistério. Eu tinha medo dos motivos, medo de conhecer aquela dor, e ansiava
apenas que ela parasse de chorar porque eu não aguentava ver.
-- Mãe, por quê você está chorando?
Era mais uma súplica do que uma pergunta, e lembro
de ela dizer simplesmente “Porque estou com vontade”, uma resposta que não me
satisfez nem me acalmou. Então em uma outra vez ela arranjou resposta melhor:
-- Fernanda, chorar é tão normal quanto rir.
Anos depois descobri que chorar é mais do que isso,
até. É tão necessário quanto comer, dormir ou fazer xixi; é fisiológico.
Então por quê que a gente sente medo do choro? Talvez
porque, por baixo dele, esteja um sentimento tão fino como raiz, que a gente
precisa quase ter alma de poeta pra entender... e ser livre pra chorar em paz. Nem sei exatamente o nome deste sentimento,
mas é algo como uma saudade absoluta, uma saudade total e que pode ser do que
já passou ou até mesmo do que a gente jamais teve ou viveu. As saudades são
assim, têm uma lógica própria e um funcionamento incompreensível a quem não
presta atenção nelas.
Eu, como todo mundo, tenho aqui minhas canções
proibidas, aquelas que me trazem o choro imediato e doloroso das saudades que
já coleciono. Vejo passar pela lembrança dos meus olhos aquele jeito tão
singular do meu pai, ao cantar Roberto Carlos para a minha mãe, ou o brilho azulado dos
cabelos tão negros que ela tinha, ao sol da manhã lá em Minas. É isso a saudade
que mais fere: coisas incrivelmente simples do cotidiano e que, um dia, acabam por
doer no coração da gente como uma pontada quase letal, e simplesmente porque só
existem agora no olhar aguado da falta.
Mas como é que eu não vou mais ouvir esta música?
Como é que vou esconder as fotografias na gaveta e fugir até do meu próprio
rosto no espelho, todas as manhãs, se o meu rosto, cada vez mais velho, se assemelha
mais e mais à minha origem? Vejo meu pai, totalmente vivo, na acidez do meu
humor; minha mãe ainda respira em cada célula do meu corpo. Pra fugir disso,
só morrendo.
E enquanto vivo, como é que vou relegar meu tesouro
maior, esta lembrança que dói, ao conforto do esquecimento, à covardia da
memória, como fingindo que o passado e as minhas raízes ficaram lá atrás, em algum
momento congelado no cofre da tristeza?
Viver assim, só pagando um preço maior, que é o de
romper com a própria história e tirar dela as melhores partes, justamente
aquelas que doem tanto porque valem muito. O alívio, neste caso, não vale o
imposto cobrado. Nossos maiores tesouros são estes mesmo, estes guardados na
veia mais escondidinha do coração, onde repousam as nossas maiores saudades.