A porta fechada era uma fronteira viva entre o corredor decorado por naturezas-mortas e a protegia das reclamações do pai, que inundavam a casa, vindas do quarto do moribundo. Foi sempre assim. O pai sempre perdeu muito tempo reclamando da vida e queixando-se da mão de Deus. Viveu os plenos dias e a insanidade, por fim.
A porta se abriu. A mãe entrou na cozinha maldizendo
a suposta sujeira dos móveis e lamentando a velhice que lhe apagou os traços. Na
sucessão das noites morreram-lhe os sonhos, restando a amargura pelo
irrevogável.
Por um momento as vozes se confundiram, se
misturaram como se fossem um dueto, e a ouvinte pousou a faca sobre o mármore,
deixou cair a batata.
A mãe saiu da cozinha, deixando a porta aberta.
O pai se calou.
Ela retomou as batatas.
Mas o silêncio era pesado, o silêncio era afiado. O silêncio
era quase rubro.A lâmina prata refletiu a luz que vinha pela janela.
A luz.
O pai gritou outra vez em seu quarto.
A mãe gritou outra vez por Deus.
Deus?
A batata tombou na pia, a mão deslizou sobre o
mármore.
O mármore frio como uma laje esquecida.Socorro.
Um grito inaudível e cortante, um grito por Deus.
A luz.
Deus?
A lâmina.
O suplício.O suplício rubro.
As batatas vermelhas rolando pelo mármore.
A natureza-morta invadindo o espaço da cozinha.
(Fernanda Dannemann)
O coquetel de talento, inteligência , sensibilidade e criatividade- tudo junto e misturado - só poderia dar no cometimento deste belo texto.
ResponderExcluirMarcos Lúcio
Fiquei sem palavras...
ExcluirIdem!
ResponderExcluirAinda bem que ninguém me descascou!
ResponderExcluirBatatinha
"Porrenquanto"...batatinha...há sempre uma faca (tomara que não enferrujada) pronta pra descascar...questão de tempo.Aguarde, então... toda batata tem seu dia de descasque...e, mais dia, menos dia, a casaca da batatinha cai, inexoravelmente kkkk.
ExcluirTe cuida, batatinha...
Excluir