quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Cada um dá o que tem

Passado o calor da notícia de morte próxima, aqueles primeiros dias de choque e de culpa, tudo volta ao que era antes. A sequência inalterada das horas, para minha amiga, e a sequência acelerada das semanas, tão cheia de coisas das mais variadas ordens na vida dos visitantes que já não visitam: os compromissos formais e os informais, as necessidades básicas que clamam, a individualidade que grita. Tudo igual a antes, tudo igual a sempre.

Em sua cama hospitalar, alugada, minha amiga dorme e acorda numa sequência de tédio e vez por outra pede à enfermeira que converse com ela ou lhe faça um cafuné. As horas para ela não passam.

Quando a visito, recusa o cafuné porque com ele sente sono, e não quer dormir. O que ela quer é conversa.

-- Se alguém perguntar por mim, diz que estou melhor. Diz que estou bem.

A morte é caprichosa, em alguns casos parece ter gosto em fazer-se esperar. É como um tic-tac que reverbera no dia e na noite de quem sofre, uma expectativa feita de dor e angústia. E de solidão, porque passado o afã do diagnóstico e do susto, a tendência é que todos abandonem para sempre este navio, que deverá seguir sozinho pelo oceano da angústia.

O moribundo é uma pessoa que se afoga na solidão do alto-mar. É assim que vejo os doentes terminais. Solidão absoluta. Com o destino selado, não há mão à qual se agarrar. Nem esperança nem salvação. Só o vazio de uma incógnita é que se abre como futuro e ansiedade.

E é aí mesmo, neste ponto do mar, que as visitas já não chegam. Desaparecem porque alguém lhes sussurra ao ouvido que já cumpriram com seu dever cristão: é a voz da covardia ou do egoísmo que ouvem? Nada incomoda mais um doente que a sensação de ser esquecido. Mas é nas piores horas, aquelas em que o fim se prolonga, preguiçoso e sádico, que as visitas desaparecem.

 Lembro quando minha mãe estava em seus últimos dias e uma amiga sua, de juventude, ligou lá das Minas Gerais. Estava nervosa, mas não devido à situação, e bem mais com o valor cobrado pelo minuto do interurbano.

-- Quem fala?

-- É Fernanda.

-- Aqui é Maria Célia, de Minas. Tenho que falar rápido porque é caro. Estou ligando para dar um abraço na sua mãe. Então fica consignado que eu liguei, está bem? Até logo!

E desligou.

É isso o que acontece: quando telefonam, as pessoas em geral pedem notícias, em vez de pedir para falar com o doente.

É como se o moribundo deixasse de ser alguém para tornar-se uma coisa ou uma entidade distante. Quase sempre, deixa de ter até gênero, de ser homem ou mulher. As cerimônias e as considerações da vida social e familiar perdem lugar para o quarto devassado, para a nudez frente a todos, para a desconsideração com a PESSOA. O banho, o funcionamento dos intestinos, a dentadura,  a dor, o sofrimento, a intimidade, o medo. A pessoa perde direito à privacidade e é como se deixasse de ter vontade, opinião, capacidade de decidir. É infantilizada em nome dos cuidados médicos e do sacrifício que as pessoas estão fazendo para cuidar dela.

E deixa de ser vista como alguém que vive: alguém que quer conversar, que pode (e quer) rir apesar do sofrimento,  que ainda pensa, sente e existe ali debaixo da doença, e que muitas vezes opta por crer em sua cura e na luta pela vida. Alguém que gostaria de usar um vestido, e não uma camisola. Por que é que doente só pode usar camisola? E por que é que a gente muitas vezes enterra o doente antes que ele morra?

Tiramos do moribundo a condição de pessoa. Usamos o oportunismo para desculpar as visitas não feitas: “Não quero incomodar...”. Pode ser o medo terrível de encarar o fim que a todos espera, bem ali, na imagem daquela pessoa doente. Ou egoísmo mesmo, porque tempo é questão de prioridade. Pode ser até a recusa a ver o lado triste da vida, porque tem gente que insiste em pensar que nasceu para o prazer, e só. Mas no fundo eu concordo com esta minha amiga, que em sua sabedoria, incontáveis vezes me disse uma verdade:

-- Cada um dá o que tem.

 

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O parente pródigo

terça-feira, 24 de setembro de 2013

"Saúde mental", por Rubem Alves

"Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.

Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maikóvski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. van Gogh se matou. Wittgenstein se alegrou ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakóvski suicidou.

Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.

Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as idéias se comportam bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado, nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, basta fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme!), ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, que tenha a coragem de pensar o que nunca pensou. Pensar é coisa muito perigosa...

Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idiotas de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. É claro que nenhuma mamãe consciente quererá que o seu filho seja como van Gogh ou Maiakóvski. O desejável é que seja executivo de grande empresa, na pior das hipóteses funcionário do Banco do Brasil ou da CPFL. Preferível ser elefante ou tartaruga a ser borboleta ou condor. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego. Mas nunca ouvi falar de político que tivesse stress ou depressão, com excessão do Suplicy. Andam sempre fortes e certos de si mesmos, em passeatas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.

Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos.

Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes. Uma delas se chama hardware, literalmente coisa dura e a outra se denomina software, coisa mole. A hardware é constituída por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. A software é constituída por entidades espirituais - símbolos, que formam os programas e são gravados nos disquetes.

Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos, o cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo espirituais, sendo que o programa mais importante é linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele. Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso de símbolos. Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas.

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensível às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos do Drummond e o corpo fica excitado.

Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e acessórios, o software, tenha a capacidade de ouvir a música que ele toca, e de se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta, e se arrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei, no princípio: a música que saía do seu software era tão bonita que o seu hardware não suportou.

A beleza pode fazer mal à saúde mental. Sábias, portanto, são as empresas estatais, que têm retratos dos governadores e presidentes espalhados por todos os lados: eles estão lá para exorcizar a beleza e para produzir o suave estado de insensibilidade necessário ao bom trabalho.

Dadas essas reflexões científicas sobre a saúde mental, vai aqui uma receita que, se seguida à risca, garantirá que ninguém será afetado pelas perturbações que afetaram os senhores que citei no início, evitando assim o triste fim que tiveram.

Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente perigosos. Já o roque pode ser tomado à vontade, sem contra indicações. Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do Dr. Lair Ribeiro, por que arriscar-se a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. A saúde mental é um estômago que entra em convulsão sempre que lhe é servido um prato diferente. Por isso que as pessoas de boa saúde mental têm sempre as mesmas idéias. Essa cotidiana ingestão do banal é condição necessária para a produção da dormência da inteligência ligada à saúde mental. E, aos domingos, não se esqueca do Sílvio Santos e do Gugu Liberato.

Seguindo esta receita você terá uma vida tranquila, embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, ao invés de ter o fim que tiveram os senhores que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já não mais saberá como eles eram".

(Provavelmente escrito em 1994)

 

sábado, 21 de setembro de 2013

Cambista acidental


Confesso: foi de olho na comissão que andei dois quilômetros no calorão carioca (apesar do sapato desconfortável) e fui parar num terminal de ônibus onde se concentravam os metaleiros a caminho do Rock in Rio.

Depois de arriscar a vida atravessando a avenida tomada pelo trânsito caótico, tive o prazer de me sentir um verdadeiro marciano ali no meio daquele povo vestido de preto, quase todos de coturno apesar do calor, meias-finas rasgadas e piercings pra todo lado. Mas o estranhamento foi de mão-dupla, porque é claro que a turma não estava entendendo muito bem o que é que aqueles dois “tiozinhos” esquisitos estavam fazendo ali: meu amigo e eu, os dois de roupinha clean e cara de fãs do “The Carpenters”. Logo alguém nos apontou e mandou a piada:
-- Onde aqueles dois deixaram o disco voador? KKKKKKKKK!

A situação esdrúxula tem explicação: meu amigo ganhou dois ingressos num sorteio e queria faturar um tutu com eles. Para me convencer a ir junto, me veio com esta, o malandro:

-- Se eu conseguir 400 nos dois te dou cinquentinha... já pesquisei tudo na internet: eles estão vendendo a 350! Vai ser moleeeeeeeza e daqui a gente vai pro shopping torrar a grana.

Fechamos a cem o valor da minha comissão e lá estávamos, os dois metidos a espertos, tentando parecer cambistas profissionais. Ele, animado, tomou a frente:

-- Você tem que se mexer, minha filha... quer ver, vou te “amostrar”...

E começou a oferecer o produto:

-- Vai um ingresso aêêê, “mermão”? Tenho dois... duzentinho cada, na moral...

A turma nos olhava com desconfiança. Ser cambista não é pra qualquer um, e acho que não transmitimos credibilidade. Várias tentativas depois, ele teve outra ideia:

-- Melhor ir na fonte e vender para os cambistas.

-- ‘bora lá!

Polícia pra todo lado, identificamos loguinho os cambistas da área. Meu amigo caiu de chofre:

-- Ó o ingresso!!!! Doizinho na mão!!!

O outro fez cara de interesse:

-- Pra que dia?

-- HOJE! Sò metaaaaaaal...

O homem fez cara de nojo e superioridade.

-- Não compro merda. Roqueiro não tem grana, é tudo fodido. Só tem fodido aqui...

No instante seguinte vendeu dois por 80 reais. Olhou pra gente, de relance, e fez um muxoxo:

-- Tô dizendo? Oitenta!

Seguimos adiante e então eu é que fiquei com nojo. Os banheiros químicos ostentavam portas abertas e rapazes fazendo xixi. Um cheeeeeeeeiro... cruzes! O que é que este povo bebe? Todos têm suas latinhas de energético na mão, mas acho que é fachada pra disfarçar o formol. Ardeu meu nariz! A única porta fechada durou pouco: vi o sósia do João Gordo sair lá de dentro e gritar para os amigos:

-- Não falei que dava pra cagar?

Foi neste ponto que caiu a ficha: o que é que eu estava fazendo ali? Melhor afanar um tutuzinho na carteira do meu marido do que tentar bancar a cambista em show de metaleiro.

-- Vende os dois por cem e v’ambora!

Meu amigo pesou prós e contras:

-- Mas aí tua comissão já era!

Enquanto ele se digladiava com o cambista, na negociação das duas capas de chuva ordinárias que vieram com os ingressos, eu olhava aquele povo paramentado e estranhava a cara tão séria de quem estava indo para um show de música... será que era apatia? Nas filas enormes para entrar nos ônibus, os metaleiros pareciam saber muito bem para onde estavam indo: a festa na qual as pessoas chegam a ficar dez horas no meio da multidão suada, segurando o xixi na bexiga... onde a  música é tão alta que ninguém dorme nos bairros vizinhos, onde celulares são roubados às centenas, comida vencida é vendida nas lanchonetes e tubulações de esgoto arrebentam...

Pensei em tudo isso e só consegui dizer uma coisa:

-- ET phone home!
 
 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O STF ensina:

Sabe qual a diferença entre Terra Brasilis e Terra de Marlboro?

É que a Terra de Marlboro é sem lei para todos. Na Terra Brasilis a lei existe, mas só para quem não é político.

Entrevista: Comandante Uchôa

"O ser humano é a maior matéria-prima do mundo"

O Comandante Carlos Uchôa é uma das pessoas mais inteligentes que já conheci, além de ter sido o primeiro brasileiro a fazer “manuseio de âncora”, uma manobra que faz a conecção das amarras das plataformas de petróleo aos poços produtores.
Aos 57 anos, este cearense entrou para a Marinha Mercante em 1975, e aos 40 anos já era comandante no Lloyd brasileiro, a extinta estatal de navegação. De lá, migrou para a dinamarquesa Maersk e, depois, para a norueguesa NorSkan, onde está há oito anos.
 À frente do Skandi Niterói, um gigante utilizado para operações de apoio em alto mar, Uchôa tem uma vida cheia de altos e baixos:  já viajou pelos cinco continentes, teve seis casamentos, oito filhos (sendo seis adotivos), derrotas que se transformaram em vitórias e a certeza de que o estudo, a persistência e a justiça são as melhores ferramentas do homem que quer vencer. "Não existe vitória sem sofrimento" e "não vale a gente se apegar a orgulho besta" são algumas das tiradas do comandante, que não tem preguiça para aprender ou ensinar, e é um papo e tanto para um café. Aproveite!





Todo nordestino é brabo?

Não. Cada um desenvolve suas potencialidades de acordo com as dificuldades que passou na vida. Se você tem que brigar e se defender, é diferente daquele que tem um pai esperando na porta da escola, né? Amadureci cedo e tinha a tendência natural de fazer as professoras se apaixonarem por mim, porque eu era determinado, o melhor aluno e bom de briga: não abria pra ninguém.  Em qualquer parte do mundo, não tenho dificuldades para me relacionar. É só ter educação.
     

Mas você está sempre pronto para puxar a peixeira?
Não, estou sempre pronto para me defender, o que pode ser de modo sutil ou arrogante. Posso ser muito educado, apesar de cabeça dura, é só me tratar direito e sou uma pessoa maravilhosa de se lidar. Mas se tiver que ser arrogante... também é comigo mesmo!

Você sempre sonhou com a Marinha?
  
Eu era estudante e dava aulas para viver, então vi a propaganda do concurso na televisão. Nem sabia o que era, mas me interessei porque queria melhorar de vida. Eu não queria ser militar, sabia que não tinha perfil e que me sentiria oprimido, tolhido na minha criatividade, e que teria que concordar com tudo... veja como é a vida: quando fui para a escola da Marinha Mercante, caí no militarismo, que era exatamente o que eu não queria.

Teve problemas?

Algumas vezes tenho problemas com hierarquia por causa da minha emoção, que não consigo controlar. Se vejo meu superior cometer uma injustiça, não seguro a minha onda. Este é o problema, nunca calo a boca. Te conto uma história: como presidente do grêmio, na escola, fundei a revista do centro acadêmico, mas na hora de publicar, o padre que era o orientador substituiu o nome dos alunos que fizeram as matérias pelo nome dos militares. Botei a revista embaixo do braço e falei “negativo!”.

Foi em cana?

Fui, mas por outros motivos: tinha uns negócios de umas namoradas lá... eu pulava o muro e voltava só de madrugada. Numa dessas, fui pego e passei um fim de semana sem poder sair. Uma outra vez, saí de uma prova de cálculo e caí num corredor polonês. Saí dando soco e dali mesmo fui direto para o xadrês. Tinha agredido um oficial, mas fui perdoado porque foi sem maldade, só quis me defender. Nunca fui preso por não concordar com a hierarquia, porque sei contrariar com polidez... o que me faz perder a linha é ser subestimado.

Você tem o sangue muito quente e o pavio curto. Como conseguiu chegar a comandante?

Foi difícil...  no Lloyd, onde trabalhei por mais de 18 anos, eu zelava mais pela eficiência que pela aparência, não me preocupava se iam me achar educado ou bonito, era focado só em resultados e não me preocupava se alguém ia me achar bonito ou educado. Minha meta sempre foi ser justo. E cheguei a comandante aos 40 anos, quando a média era 55. Sempre dei o melhor de mim, e as coisas aconteceram naturalmente. Mas foi duro.

Foi bom chegar a comandante tão cedo?
 
O Lloyd tinha mais de 130 navios, e eu comandava o mais moderno. Tinha um orgulho bestial, achava que podia tudo. Era uma prepotência imbecil, acho que por causa da inexperiência, mesmo. Eu era pouco cuidadoso com as pessoas. Quando a empresa acabou, fiquei perdido, não sabia o que fazer. Voltei pra escola e comecei tudo de novo, como segundo-oficial numa empresa dinamarquesa. Meu trabalho era limpar o chão do passadiço, servir café para os comandantes e fazer tradução para a Petrobras. Coisa que nenhum dos meus amigos do Lloyd quis se sujeitar a fazer: eles preferiram se aposentar. Fiquei nessa por quase cinco anos e acabei sendo o primeiro brasileiro a ser oficial sênior nesta empresa, que temia a competição e não confiava em brasileiros. Mas sofri muito, tinha dias que eu ia chorar no banheiro, por me sentir tão humilhado.

 
Valeu?

A soberba e a prepotência desapareceram, e vi que as coisas são efêmeras, que o sucesso é passageiro e não vale a gente se apegar a orgulho besta. Aquilo foi uma lição divina me dizendo “olha, cara, você não está preparado ainda para o sucesso e não é um ser humano legal. Você não aprendeu nada da vida. Volta e vai aprender tudo de novo”. Foi doído, mas sou grato porque me fez avaliar meus conceitos e valores, e fiquei melhor como ser humano.

É verdade aquela história de que em cada porto o marinheiro tem um amor?

Não, o que acontece é que você encontra pessoas, as necessidades se juntam e você tira proveito da situação. Antigamente, na marinha mercante você passava um ano embarcado e um mês em casa. Você não tinha família, era só um provedor que pagava as contas. Tanto, que me casei seis vezes, e não digo isso com orgulho, digo com tristeza, porque a marinha mercante me deu muita coisa, mas me tirou a oportunidade de conviver com a minha família e de educar os meus filhos. Por felicidade minha, minhas ex-esposas são maravilhosas e foram felizes na educação das crianças, e nenhum dos rompimentos foi culpa delas. 

Mas você mudou suas prioridades.

Sim, mudei minha vida, trabalho 28 dias no navio e 28 fico em terra, estou casado há seis anos e nunca traí a minha mulher. Amadureci, e ela é uma felizarda porque tem um marido melhor, que entende a alma feminina e não quer cometer os erros do passado. Errei tanto que não me perdoaria se errasse novamente. Sou feliz por ser fiel. Casamento é apoio e companheirismo, além da paixão, é claro.

Como é o dia a dia no navio?

Estou na NorSkan, há 8 anos, onde acompanho a construção de navios. Já foram oito. Em média, são 80 pessoas nos navios de construção, sendo que a tripulação tem mais ou menos 25 pessoas. Hoje sou comandante do Skandi Niterói, um navio de lançamento de linhas flexíveis para plataformas, e ele é 50% norueguês e 50% francês, sendo que os tripulantes são todos brasileiros. Mas também tem os franceses, escoceses, noruegueses, ingleses e americanos. Quem cuida dos lançamentos da linha é o especialista da empresa, a mim compete a parte náutica. O desafio é grandioso, é um aprendizado a cada dia porque as operações são diferentes e as pessoas também. Elas têm formação, filosofias e culturas diferentes. Para trabalhar com elas, é preciso ter se preparado tecnicamente, claro, mas também é preciso ter experiência de vida... ter preparo como ser humano e administrador de pessoas.
 
Qual o seu maior desafio?

É estar sempre mostrando que sou capaz.  Apesar de tudo o que já fiz, é como se eu matasse dois leões hoje e amarrasse dois para amanhã, porque nós, brasileiros, estamos sempre sendo postos à prova. É como se o cara nunca fosse suficiente, porque ele não tem os olhos azuis, um metro e noventa e não nasceu na Dinamarca. Quando vou para uma reunião, eles esperam um cara branco e alto, mas encontram um baixinho de cabeçona, então eles ficam até meio confusos, porque a figura não bate com a imagem que eles têm do comandante.

 
As coisas são mais difíceis para o nordestino?

Não só para o nordestino, mas para o brasileiro. A idéia que eles têm é que nós somos muito bons de futebol, criativos, mas não somos eficientes. Mesmo que a gente esteja sempre provando o contrário. Me submeti a um verdadeiro calvário para aprender, porque eles não ensinavam nada, se protegiam. É diferente da minha filosofia: o meu escritório é no passadiço, e tudo o que eu sei, passo para os meus oficiais. E aprendo muito com eles.

 
O que foi decisivo para vencer?

Determinação. Você tem que estar focado em sua preparação para os desafios e sofrimentos, porque não existe vitória sem sofrimento. Tudo na sua vida é 95% suor, dedicação e esforço. Não adianta rezar e esperar cair do céu, tem que trabalhar. Estar aberto ao aprendizado também fez toda a diferença para mim. A gente tem que entender que não sabe tudo, e que todo mundo tem alguma coisa para ensinar. Você pode aprender com um mendigo, um marinheiro, uma pessoa analfabeta, porque o aprendizado independe da função que as pessoas exercem. Não pode ser arrogante, achando que sabe tudo, porque sempre vai chegar uma situação diferente, que você não domina, e você vai se sentir um idiota.

 
O que você diria a quem está pensando em entrar para a marinha mercante?

Os jovens têm muita competência, mas não querem esperar pela experiência e assumem compromissos para os quais ainda não estão preparados. Não têm medo de errar porque não têm responsabilidade com o erro. Se eles cometem uma besteira, saem daqui e vão para outra empresa. Precisam aprender que o medo também pode ser bom, ele te faz se prevenir, se preparar, estar sempre aprendendo. O ser humano é, acima de tudo, a maior matéria-prima do mundo. você não deve temer os desafios, deve sempre se lembrar de que é capaz, mas com responsabilidade e maturidade. E cercar-se de pessoas que sejam complementares à sua vida, seja no trabalho ou na vida pessoal: a melhor maneira de enfrentar as dificuldades e os desafios é ter uma boa equipe, pode ter certeza disso.


No frio da Noruega, Uchôa curte um churrasquinho pra relaxar

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Receita de bem-viver

Um repórter perguntou a Cora Coralina:

-- O que é viver bem?

Ela respondeu:
-- Eu não tenho medo dos anos e não penso em velhice. E digo pra você, não pense.
Nunca diga "estou envelhecendo", "estou ficando velho". Eu não digo. Eu não digo estou velha e não digo que estou ouvindo pouco. É claro que quando preciso de ajuda eu digo que preciso. Procuro sempre ler e estar atualizada,  isso me ajuda a vencer as dificuldades da vida. O melhor roteiro é ler e praticar o que lê. O bom é produzir sempre e não dormir de dia. Também não diga pra você que está ficando esquecido, porque assim você fica mais. Nunca digo que estou doente, digo sempre: estou ótima.
Eu não digo nunca que estou cansada. Nada de palavra negativa. Quanto mais você diz estar ficando cansado e esquecido, mais esquecido fica. Você vai se convencendo daquilo e convence os outros. Então, silêncio! Sei que tenho muitos anos. Sei que venho do século passado e que trago comigo todas as idades, mas não sei se sou velha não. Você acha que eu sou? Posso dizer que eu sou a terra e nada mais quero ser. Filha dessa abençoada terra de Goiás. Convoco os velhos como eu, ou mais velhos que eu, para exercerem seus direitos. Sei que alguém vai ter que me enterrar, mas eu não vou fazer isso comigo. Tenho consciência de ser autêntica e procuro superar todos os dias minha própria personalidade, despedaçando dentro de mim tudo que é velho e morto, pois lutar é a palavra vibrante que levanta os fracos e determina os fortes. O importante é semear, produzir milhões de sorrisos de solidariedade e amizade. Procuro semear otimismo e plantar sementes de paz e justiça. Digo o que penso, com esperança. Penso no que faço, com fé. Faço o que devo fazer, com amor. Eu me esforço para ser cada dia melhor, pois bondade também se aprende.

 
 

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Histeria

O tempo não existe,

O que persiste é o vento:
Os nós  do meu cabelo,
Esta gordura nos meus óculos?

São desmazelo.
 

O dia não existe,

O que insiste é água:

Dôo nas barbatanas.

Desoriento.

 
As ilusões mundanas, sob a anágua,
O coração miúdo, sob o espartilho,

A castidade, santificada,

Sou eu no tempo.
 
 
Asfixiada.

 
Para me ver, preciso de binóculos.
 
(Fernanda Dannemann)
 

 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

A modelo-diarista

De volta à saga "Em busca da diarista perfeita"... desta vez tenho pouco a dizer e muito a mostrar, pois a moça não é exatamente um modelo de diarista, mas certamente é a modelo-diarista, se é que você me entende...




Leia alguns posts da série "Diarista":

O milagre da multiplicação das Julienes

"Trago a Cinderela do Lar em três dias"

Limonada na macumba telepática

domingo, 8 de setembro de 2013

A gente acredita no que quer

Receita de SANDUICHE (que não engorda e leva pão à vontade!)

Ingredientes:



Pegue uma fatia de pão...


Intercale com fatias de peito de peru...


Depois espalhe polenguinho em outra fatia de pão...


Tomate picadinho e sal marinho...


Enrole como se fosse um rocambole e, caso tenha palitos de dentes em casa (eu não tenho), use-os para prender o sanduíche...


Corte ao meio, na diagonal...


E bom apetite! (Lá na minha terra o nome disso era "salada", mas sabe como é... a gente acredita no que quer! E digo mais: o sanduba fica ótimo!).

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O farsante

Era assim: minha amiga Eunice estava péssima por conta do fora que tinha levado do namorado e resolveu curar as mágoas virando cacho de um italianão que conheceu no trabalho. O homem era do escritório internacional, e quando aparecia no Rio os dois curtiam as boas coisas da vida. Um dia, conversando comigo, ela contou que não entendia muito bem as coisas que ele murmurava ao pé do seu ouvido, nos momentos de maior romance.
-- Ele murmura em italiano e eu não entendo... mas fico nas nuvens, mesmo sabendo que ele deve estar falando aquelas coisas maravilhosas que toda mulher sabe que é mentira, mas gosta de ouvir...
Ali estava uma mulher que se deixava enganar em troca dos prazeres mundanos... exatamente como parece que venho fazendo, com minha nova paixão, nestes tempos de dieta alimentar. Qual a mulher que nunca se deixou levar por uma história de amor, promessas e ilusão?
O caso é o seguinte:  “dietante” de primeira viagem, e após perder quase três quilos na primeira semana de dieta, corri para o tal do “doce diet” que as confeitarias juram que não engordam. E eis que 15 dias e 15 cheese-cakes diet depois, meu marido chegou em casa com um presente para mim: uma balança eletrônica.
Tentei entrar no clima: noooooooossa, que homem incrível! Ele conseguiu adivinhar o presente ideal para mim! Uma balança era TU-DO que eu sonhava... só não é melhor que uma caixa de ferramentas!
Mas eu não queria subir na balança. Tá bom que eu não tenho prática com dietas, mas sei muito bem que a maioria das balanças é volúvel e mentirosa, e que o peso da gente sempre varia de uma para outra. Balança confiável, só mesmo aquelas especiais, que os médicos têm em seus consultórios. Eu não queria subir, mas... não resisti. Depois daquelas duas semanas de sacrifício, e com o prazer gastronômico limitado ao cheese-cake diet, achei que seria compensada.
Pois imagine você o meu choque ao constatar que todos os quilos e gramas continuam aqui, e certamente com as respectivas células adiposas confortavelmente instaladas dentro das minhas curvinhas...
Chocada, encontrei imediatamente o culpado: o cheese-cake, aquele farsante!  Enquanto isso, meu marido, gorducho experiente a respeito de regimes de emagrecimento, tentou me confortar:
-- É assim mesmo, não desanima! Você está com o mesmo peso, mas perdeu medidas!
Diante de um argumento como este, acho que tenho que chamar a Angela, que me dava aulas particulares de matemática na infância, pra me explicar por “A+B” como é que é possível uma pessoa perder medidas e continuar com o mesmo peso! Isto não seria matematicamente impossível?
Péssima, e com ódio daquele presente nojento que o gorducho achou por bem me comprar, fui afogar as mágoas num cafezinho com creme de leite e resolvi até economizar no adoçante:  botei só duas gotas.
Mas olha, isto não há de ficar assim... amanhã é dia de pesagem lá na médica, e está decidido! Ao fim da consulta hei de comer, com minha boca arreganhada e cheia de dentes, aquele cheese-cake tão confiável quanto o amante italiano da minha amiga! Se vai ser pra comemorar o sucesso da dieta, ou pra chorar de decepção... eu não sei. Mas diante do trauma da situação, isso já nem importa mais!

 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Frase do dia

"Não se fala apenas sobre Deus; também se fala com Ele".

                                                                                 Martin Buber