Em sua cama hospitalar, alugada, minha amiga dorme e
acorda numa sequência de tédio e vez por outra pede à enfermeira que converse
com ela ou lhe faça um cafuné. As horas para ela não passam.
Quando a visito, recusa o cafuné porque com ele
sente sono, e não quer dormir. O que ela quer é conversa.
-- Se alguém perguntar por mim, diz que estou
melhor. Diz que estou bem.
A morte é caprichosa, em alguns casos parece ter
gosto em fazer-se esperar. É como um tic-tac que reverbera no dia e na noite de
quem sofre, uma expectativa feita de dor e angústia. E de solidão, porque
passado o afã do diagnóstico e do susto, a tendência é que todos abandonem para
sempre este navio, que deverá seguir sozinho pelo oceano da angústia.
O moribundo é uma pessoa que se afoga na solidão do
alto-mar. É assim que vejo os doentes terminais. Solidão absoluta. Com o
destino selado, não há mão à qual se agarrar. Nem esperança nem salvação. Só o
vazio de uma incógnita é que se abre como futuro e ansiedade.
E é aí mesmo, neste ponto do mar, que as visitas já
não chegam. Desaparecem porque alguém lhes sussurra ao ouvido que já cumpriram
com seu dever cristão: é a voz da covardia ou do egoísmo que ouvem? Nada
incomoda mais um doente que a sensação de ser esquecido. Mas é nas piores
horas, aquelas em que o fim se prolonga, preguiçoso e sádico, que as visitas
desaparecem.
Lembro quando
minha mãe estava em seus últimos dias e uma amiga sua, de juventude, ligou lá
das Minas Gerais. Estava nervosa, mas não devido à situação, e bem mais com o
valor cobrado pelo minuto do interurbano.
-- Quem fala?
-- É Fernanda.
-- Aqui é Maria Célia, de Minas. Tenho que falar rápido porque é caro. Estou ligando para
dar um abraço na sua mãe. Então fica consignado que eu liguei, está bem? Até
logo!
E desligou.
É isso o que acontece: quando telefonam, as pessoas em geral pedem notícias, em vez de pedir para falar com o doente.
É como se o moribundo deixasse de ser alguém para tornar-se uma coisa ou uma entidade distante. Quase sempre, deixa de ter até gênero, de ser homem ou mulher. As cerimônias e as considerações da vida social e familiar perdem lugar para o quarto devassado, para a nudez frente a todos, para a desconsideração com a PESSOA. O banho, o funcionamento dos intestinos, a dentadura, a dor, o sofrimento, a intimidade, o medo. A pessoa perde direito à privacidade e é como se deixasse de ter vontade, opinião, capacidade de decidir. É infantilizada em nome dos cuidados médicos e do sacrifício que as pessoas estão fazendo para cuidar dela.
É como se o moribundo deixasse de ser alguém para tornar-se uma coisa ou uma entidade distante. Quase sempre, deixa de ter até gênero, de ser homem ou mulher. As cerimônias e as considerações da vida social e familiar perdem lugar para o quarto devassado, para a nudez frente a todos, para a desconsideração com a PESSOA. O banho, o funcionamento dos intestinos, a dentadura, a dor, o sofrimento, a intimidade, o medo. A pessoa perde direito à privacidade e é como se deixasse de ter vontade, opinião, capacidade de decidir. É infantilizada em nome dos cuidados médicos e do sacrifício que as pessoas estão fazendo para cuidar dela.
E deixa de ser vista como alguém que vive: alguém
que quer conversar, que pode (e quer) rir apesar do sofrimento, que ainda pensa, sente e existe ali debaixo da
doença, e que muitas vezes opta por crer em sua cura e na luta pela vida. Alguém que gostaria de usar um vestido, e não uma camisola. Por que é
que doente só pode usar camisola? E por que é que a gente muitas vezes enterra o doente antes que ele morra?
Tiramos do moribundo a condição de pessoa. Usamos o
oportunismo para desculpar as visitas não feitas: “Não quero incomodar...”.
Pode ser o medo terrível de encarar o fim que a todos espera, bem ali, na
imagem daquela pessoa doente. Ou egoísmo mesmo, porque tempo é questão de
prioridade. Pode ser até a recusa a ver o lado triste da vida, porque tem gente
que insiste em pensar que nasceu para o prazer, e só. Mas no fundo eu concordo
com esta minha amiga, que em sua sabedoria, incontáveis vezes me disse
uma verdade:
-- Cada um dá o que tem.
Fernanda,
ResponderExcluirSeu post esta impecavel .... e quanta verdade ..... infelizmente.
E por esta razao que quando fico sabendo que uma pessoa morreu de ataque de coracao.... fulminante (como costumo dizer) ou morreu dormindo, eu penso comigo: " que pessoa abencoada".....
Felicidades,
Gilda Bose
Nada a acrescentar ao indefectível e realista texto da talentosa blogueira e faço minhas as palavras da prezada Gilda, também. Realmente a desagradável, sofrida (ou injusta?!) situação exposta, mais humilha que ensina.
ResponderExcluirPorém, como o Schopenhauer foi quem - na minha modesta avaliação-, melhor identificou a chave do riquíssimo baú da felicidade, reproduzo este seu luminoso pensamento, concordando cem por cento com ele, logicamente.É o que tenho para dar, no momento, ou o que considero bom para compartilhar.
Santé e axé!!!
Marcos Lúcio
A Saúde é Essencial à Felicidade
Para saber o quanto a nossa felicidade depende da jovialidade do ânimo e este do estado de saúde, é preciso comparar a impressão que as mesmas situações ou eventos exteriores provocam em nós nos dias de saúde e vigor com aquela produzida por eles quando a doença nos deixa aborrecidos e angustiados. O que nos torna felizes ou infelizes não é o que as coisas são objectiva e realmente, mas o que são para nós, na nossa concepção. É o que anuncia Epicteto: O que comove os homens não são as coisas, mas a opinião sobre elas. Em geral, 9/10 da nossa felicidade repousam exclusivamente sobre a saúde. Com esta, tudo se torna fonte de deleite. Pelo contrário, sem ela, nenhum bem exterior é fruível, seja ele qual for, e mesmo os bens subjectivos restantes, os atributos do espírito, do coração, do temperamento, tornam-se indisponíveis e atrofiados pela doença. Sendo assim, não é sem fundamento o facto de as pessoas se perguntarem umas às outras, antes de qualquer coisa, pelo estado de saúde e desejarem mutuamente o bem-estar. Pois realmente a saúde é, de longe, o elemento principal para a felicidade humana. Por conta disso, resulta que a maior de todas as tolices é sacrificá-la, seja pelo que for: ganho, promoção, erudição, fama, sem falar da volúpia e dos gozos fugazes. Na verdade, deve-se pospor tudo à saúde.
Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'
Mauro Pires de Amorim.
ResponderExcluirEntendo perfeitamente o que você diz. Há pouco mais de 1 ano, meu pai foi-se. Estava com câncer e era doente terminal. Todos da família sabíamos disso, mas evitávamos falar isso com ele. Mas um dia, quando fui à sua casa visita-lo, ele escreveu para mim, já que falar ele não podia por conta da traqueostomia. "Não tenho medo de morrer".
Não era para menos, pois não devia nada a ninguém, nem mesmo ao seu passado. Não fez como muitos, que refugiam-se em alguma praia paradisíaca, de preferência em outro país como préstimo premiativo pelas canalhices, mentiras e mau-caratismo do passado.
Dia 2 de agosto desse ano fez 1 ano que ele foi-se e dia 24 de setembro, caso estivesse vivo, faria 80 anos de idade.
Eu sabia que isso aconteceria, pois ele lutava há cerca de 2 anos contra um feroz câncer e cada vez mais ficava debilitado. Mas como ele era, além de meu pai, meu melhor amigo. O único homem que amei. Por isso, não o deixaria só nunca.
Penso que, talvez, quando a morte chega repentinamente, é melhor para quem parte, pois abrevia o tempo de sofrimento, mas para quem fica, é pior, pois o choque da ausência súbita, repentina, daquela pessoa que conosco estava há bem pouco tempo atrás e que agora, não está mais.
Apesar de seu sofrimento nesses 2 anos, até na hora de partir, ele foi generoso, dando-nos tempo para nos acostumarmos com sua ausência e digerirmos a sua ausência.
Felicidades e boas energias.
Estimado presidente do C.P,F.A.S., Marcos Lucio,
ResponderExcluirArthur Schopenhauer era realmente um sabio. Sempre que brindamos dizemos um (s) ao (s) outro (s): "saude" ... sim pois ela e a parte mais importante para se ter uma vida feliz, e porque nao acrescentar dinheiro, tambem, pois vivemos num mundo material, tem que se ter o minimo, para podermos ter uma vida descente .... nao e mesmo .....
Abracao proce, saude e felicidades hoje e sempre.
E a nossa Fernanda querida, muita saude e felicidades, pois sem ela nao teriamos este espaco tao agradavel para dar os nossos comentarios.
Gilda Bose
OBRIGADO,ILUSTRE E QUERIDA DIRETORA DO C.P.F.A.S.S.
ExcluirEnquanto houver o generoso incentivo de sua parte e a receptiva acolhida da talentosa blogueira, continuarei a dar meus sinceros e modestos pitacos...uma vez que a MINHA TERCEIRA LEITORA RSRS:Mônica ...sumiu.Também sinto falta virtual dela.
Quanto ao dinheiro, indiscutível que sem ele, até a saúde fica comprometida, e morre-se de fome rsrs...pois não existe almoço grátis ...sempre alguém paga por ele, né? Mas continuo convicto de que o citado sábio está corretíssimo quando afirma categoricamente;
"O dinheiro é uma felicidade humana abstracta; por isso aquele que já não é capaz de apreciar a verdadeira felicidade humana, dedica-se completamente a ele.
A riqueza influencia-nos como a água do mar. Quanto mais bebemos, mais sede temos..
A nossa felicidade depende mais do que temos nas nossas cabeças, do que nos nossos bolsos".
Arthur Schopenhauer
Santé, axé, alegrias e sorte, procê e Fernanda Carolina
M.L.
Um dia teremos que reunir a turma deste blog para um café de verdade. Gente, alguém aí sabe da Mônica Tresa? Se alguém tiver facebook pode procura-la e dizer que sentimos falta dela???
ResponderExcluirAssino embaixo.
ExcluirM.L.
Fernanda, acho que sera bem divertido.
ResponderExcluirG.B.