quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Entrevista: Comandante Uchôa

"O ser humano é a maior matéria-prima do mundo"

O Comandante Carlos Uchôa é uma das pessoas mais inteligentes que já conheci, além de ter sido o primeiro brasileiro a fazer “manuseio de âncora”, uma manobra que faz a conecção das amarras das plataformas de petróleo aos poços produtores.
Aos 57 anos, este cearense entrou para a Marinha Mercante em 1975, e aos 40 anos já era comandante no Lloyd brasileiro, a extinta estatal de navegação. De lá, migrou para a dinamarquesa Maersk e, depois, para a norueguesa NorSkan, onde está há oito anos.
 À frente do Skandi Niterói, um gigante utilizado para operações de apoio em alto mar, Uchôa tem uma vida cheia de altos e baixos:  já viajou pelos cinco continentes, teve seis casamentos, oito filhos (sendo seis adotivos), derrotas que se transformaram em vitórias e a certeza de que o estudo, a persistência e a justiça são as melhores ferramentas do homem que quer vencer. "Não existe vitória sem sofrimento" e "não vale a gente se apegar a orgulho besta" são algumas das tiradas do comandante, que não tem preguiça para aprender ou ensinar, e é um papo e tanto para um café. Aproveite!





Todo nordestino é brabo?

Não. Cada um desenvolve suas potencialidades de acordo com as dificuldades que passou na vida. Se você tem que brigar e se defender, é diferente daquele que tem um pai esperando na porta da escola, né? Amadureci cedo e tinha a tendência natural de fazer as professoras se apaixonarem por mim, porque eu era determinado, o melhor aluno e bom de briga: não abria pra ninguém.  Em qualquer parte do mundo, não tenho dificuldades para me relacionar. É só ter educação.
     

Mas você está sempre pronto para puxar a peixeira?
Não, estou sempre pronto para me defender, o que pode ser de modo sutil ou arrogante. Posso ser muito educado, apesar de cabeça dura, é só me tratar direito e sou uma pessoa maravilhosa de se lidar. Mas se tiver que ser arrogante... também é comigo mesmo!

Você sempre sonhou com a Marinha?
  
Eu era estudante e dava aulas para viver, então vi a propaganda do concurso na televisão. Nem sabia o que era, mas me interessei porque queria melhorar de vida. Eu não queria ser militar, sabia que não tinha perfil e que me sentiria oprimido, tolhido na minha criatividade, e que teria que concordar com tudo... veja como é a vida: quando fui para a escola da Marinha Mercante, caí no militarismo, que era exatamente o que eu não queria.

Teve problemas?

Algumas vezes tenho problemas com hierarquia por causa da minha emoção, que não consigo controlar. Se vejo meu superior cometer uma injustiça, não seguro a minha onda. Este é o problema, nunca calo a boca. Te conto uma história: como presidente do grêmio, na escola, fundei a revista do centro acadêmico, mas na hora de publicar, o padre que era o orientador substituiu o nome dos alunos que fizeram as matérias pelo nome dos militares. Botei a revista embaixo do braço e falei “negativo!”.

Foi em cana?

Fui, mas por outros motivos: tinha uns negócios de umas namoradas lá... eu pulava o muro e voltava só de madrugada. Numa dessas, fui pego e passei um fim de semana sem poder sair. Uma outra vez, saí de uma prova de cálculo e caí num corredor polonês. Saí dando soco e dali mesmo fui direto para o xadrês. Tinha agredido um oficial, mas fui perdoado porque foi sem maldade, só quis me defender. Nunca fui preso por não concordar com a hierarquia, porque sei contrariar com polidez... o que me faz perder a linha é ser subestimado.

Você tem o sangue muito quente e o pavio curto. Como conseguiu chegar a comandante?

Foi difícil...  no Lloyd, onde trabalhei por mais de 18 anos, eu zelava mais pela eficiência que pela aparência, não me preocupava se iam me achar educado ou bonito, era focado só em resultados e não me preocupava se alguém ia me achar bonito ou educado. Minha meta sempre foi ser justo. E cheguei a comandante aos 40 anos, quando a média era 55. Sempre dei o melhor de mim, e as coisas aconteceram naturalmente. Mas foi duro.

Foi bom chegar a comandante tão cedo?
 
O Lloyd tinha mais de 130 navios, e eu comandava o mais moderno. Tinha um orgulho bestial, achava que podia tudo. Era uma prepotência imbecil, acho que por causa da inexperiência, mesmo. Eu era pouco cuidadoso com as pessoas. Quando a empresa acabou, fiquei perdido, não sabia o que fazer. Voltei pra escola e comecei tudo de novo, como segundo-oficial numa empresa dinamarquesa. Meu trabalho era limpar o chão do passadiço, servir café para os comandantes e fazer tradução para a Petrobras. Coisa que nenhum dos meus amigos do Lloyd quis se sujeitar a fazer: eles preferiram se aposentar. Fiquei nessa por quase cinco anos e acabei sendo o primeiro brasileiro a ser oficial sênior nesta empresa, que temia a competição e não confiava em brasileiros. Mas sofri muito, tinha dias que eu ia chorar no banheiro, por me sentir tão humilhado.

 
Valeu?

A soberba e a prepotência desapareceram, e vi que as coisas são efêmeras, que o sucesso é passageiro e não vale a gente se apegar a orgulho besta. Aquilo foi uma lição divina me dizendo “olha, cara, você não está preparado ainda para o sucesso e não é um ser humano legal. Você não aprendeu nada da vida. Volta e vai aprender tudo de novo”. Foi doído, mas sou grato porque me fez avaliar meus conceitos e valores, e fiquei melhor como ser humano.

É verdade aquela história de que em cada porto o marinheiro tem um amor?

Não, o que acontece é que você encontra pessoas, as necessidades se juntam e você tira proveito da situação. Antigamente, na marinha mercante você passava um ano embarcado e um mês em casa. Você não tinha família, era só um provedor que pagava as contas. Tanto, que me casei seis vezes, e não digo isso com orgulho, digo com tristeza, porque a marinha mercante me deu muita coisa, mas me tirou a oportunidade de conviver com a minha família e de educar os meus filhos. Por felicidade minha, minhas ex-esposas são maravilhosas e foram felizes na educação das crianças, e nenhum dos rompimentos foi culpa delas. 

Mas você mudou suas prioridades.

Sim, mudei minha vida, trabalho 28 dias no navio e 28 fico em terra, estou casado há seis anos e nunca traí a minha mulher. Amadureci, e ela é uma felizarda porque tem um marido melhor, que entende a alma feminina e não quer cometer os erros do passado. Errei tanto que não me perdoaria se errasse novamente. Sou feliz por ser fiel. Casamento é apoio e companheirismo, além da paixão, é claro.

Como é o dia a dia no navio?

Estou na NorSkan, há 8 anos, onde acompanho a construção de navios. Já foram oito. Em média, são 80 pessoas nos navios de construção, sendo que a tripulação tem mais ou menos 25 pessoas. Hoje sou comandante do Skandi Niterói, um navio de lançamento de linhas flexíveis para plataformas, e ele é 50% norueguês e 50% francês, sendo que os tripulantes são todos brasileiros. Mas também tem os franceses, escoceses, noruegueses, ingleses e americanos. Quem cuida dos lançamentos da linha é o especialista da empresa, a mim compete a parte náutica. O desafio é grandioso, é um aprendizado a cada dia porque as operações são diferentes e as pessoas também. Elas têm formação, filosofias e culturas diferentes. Para trabalhar com elas, é preciso ter se preparado tecnicamente, claro, mas também é preciso ter experiência de vida... ter preparo como ser humano e administrador de pessoas.
 
Qual o seu maior desafio?

É estar sempre mostrando que sou capaz.  Apesar de tudo o que já fiz, é como se eu matasse dois leões hoje e amarrasse dois para amanhã, porque nós, brasileiros, estamos sempre sendo postos à prova. É como se o cara nunca fosse suficiente, porque ele não tem os olhos azuis, um metro e noventa e não nasceu na Dinamarca. Quando vou para uma reunião, eles esperam um cara branco e alto, mas encontram um baixinho de cabeçona, então eles ficam até meio confusos, porque a figura não bate com a imagem que eles têm do comandante.

 
As coisas são mais difíceis para o nordestino?

Não só para o nordestino, mas para o brasileiro. A idéia que eles têm é que nós somos muito bons de futebol, criativos, mas não somos eficientes. Mesmo que a gente esteja sempre provando o contrário. Me submeti a um verdadeiro calvário para aprender, porque eles não ensinavam nada, se protegiam. É diferente da minha filosofia: o meu escritório é no passadiço, e tudo o que eu sei, passo para os meus oficiais. E aprendo muito com eles.

 
O que foi decisivo para vencer?

Determinação. Você tem que estar focado em sua preparação para os desafios e sofrimentos, porque não existe vitória sem sofrimento. Tudo na sua vida é 95% suor, dedicação e esforço. Não adianta rezar e esperar cair do céu, tem que trabalhar. Estar aberto ao aprendizado também fez toda a diferença para mim. A gente tem que entender que não sabe tudo, e que todo mundo tem alguma coisa para ensinar. Você pode aprender com um mendigo, um marinheiro, uma pessoa analfabeta, porque o aprendizado independe da função que as pessoas exercem. Não pode ser arrogante, achando que sabe tudo, porque sempre vai chegar uma situação diferente, que você não domina, e você vai se sentir um idiota.

 
O que você diria a quem está pensando em entrar para a marinha mercante?

Os jovens têm muita competência, mas não querem esperar pela experiência e assumem compromissos para os quais ainda não estão preparados. Não têm medo de errar porque não têm responsabilidade com o erro. Se eles cometem uma besteira, saem daqui e vão para outra empresa. Precisam aprender que o medo também pode ser bom, ele te faz se prevenir, se preparar, estar sempre aprendendo. O ser humano é, acima de tudo, a maior matéria-prima do mundo. você não deve temer os desafios, deve sempre se lembrar de que é capaz, mas com responsabilidade e maturidade. E cercar-se de pessoas que sejam complementares à sua vida, seja no trabalho ou na vida pessoal: a melhor maneira de enfrentar as dificuldades e os desafios é ter uma boa equipe, pode ter certeza disso.


No frio da Noruega, Uchôa curte um churrasquinho pra relaxar

3 comentários:

  1. Fernanda,

    Nota 1000 para esta reportagem ..... Barbara, quem ler que tire aproveito de tudo que esta escrito porque na minha modesta opiniao e verdade, nao existe sucesso sem derrota, sem suor, sim sao 95% de esforco e porque nao dizer tambem 5% de sorte (pois ela e muito importante).

    E parabens ao comandante Carlos Uchoa, por compartir seu conhecimento com aos que estao ao seu redor, e por ser um brasileiro brilhante, Bravo!!!

    Felicidades,

    Gilda Bose

    ResponderExcluir
  2. Eu conheci o comandante no Lloyd e ele me liberou uma fatura importante para a firma em que eu trabalhava (Eu fazia orçamentos e de vez em quando ficava aquela coisa de interpretação) Orçamentos volta e meia ficavam 'agarrados'à mercê das interpretações e esse, em especial ao encargo dele (comandante) era muito importante para a firma porque representava boa parte do pagamento do fim de ano do nosso pessoal, inclusive eu.
    Bom saber o que fazem as pessoas e a Noruega, para mim, é um sonho que nunca pude realizar. Na outra vida vou lá sem falta.

    ResponderExcluir

Dicas para facilitar:
- Escreva seu nome e seu comentário;
- Selecione seu perfil:----> "anônimo";
- Clique em "Postar comentário";
Obrigada!!!!!