quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Um homem com saia de oncinha

Sentado no sofá da área-comum do shopping, o rapaz me observava com o olhar desafiador e um sorrisinho de canto de boca, daqueles meio debochados. Não, ele não estava sentado: estava refestelado, tomando todo o conforto do sofá para si, com seus braços, pernas e saias espalhados pelas almofadas, e os pés, de unhas feitas à moda “francesinha”, se alternando num balanço nervosinho.

Sim, o moço estava vestido de mulher, e confesso que num primeiro momento passei pelo impacto da surpresa. Não é sempre que a gente vê por aí um rapaz com cara de rapaz, cabelo de rapaz, corpo e músculos de rapaz... portando uma saia godê e uma sandalinha rasteira. Mas passados os primeiros segundos meus olhos se acostumaram e ele foi naturalmente integrado à paisagem. Mesmo assim, em resposta à minha surpresa inicial, me olhava com cara de deboche e desafio.
Dias depois, tornei a vê-lo, e desta vez na livraria. Usava uma saia longa de oncinha e bolsa tiracolo rosa-choque. Mais que nele, prestei atenção ao redor e percebi que ninguém olhava em sua direção. No começo achei muito bacana que aquele homem de saia estivesse tão “homogeneizado” ali no ambiente, mas então percebi que havia um certo esforço no ar; um esforço coletivo em busca da naturalidade. Era assim: ninguém olhava em sua direção, mas quando ele já estava longe, tornava-se alvo de comentários e risinhos.

Através da livraria eu o perseguia a pretexto de olhar os livros, e enquanto observava a reação das pessoas, peguei-me já sua admiradora: é preciso muita coragem para assumir-se assim, sobretudo em um país como o Brasil. Imagine você a extensão do deserto que este homem atravessou, sem uma gota de água sequer, para chegar onde chegou. E que batalhas teve que vencer pelo direito de ser quem é.
Lembrei do Laerte, cartunista, que admiro muitíssimo não só pelo talento e pela inteligência, mas também por esta coragem, esta audácia... de ser quem é.
Curioso isso... as redes sociais e a mídia criaram possibilidades para que as pessoas se sentissem mais livres, mais espontâneas, mais importantes... mas como o ser humano é autocentrado em demasia, tornou-se uma "vaca feliz" em meio à manada imensa, vivendo nas telas do Face e nas fotos do Instagram como se fosse protagonista da novela das nove, encaixando-se com perfeição ao que se espera dele. Pode estar ferrado por dentro, contanto que por fora haja um “botox comportamental” que segure as aparências. E como todo mundo está no mesmo barco,  a tal rede social cuida para que uns amparem os outros, de modo que todos sejam sustentados em sua hipocrisia.

Não, não me digam que sou pessimista... os dramas humanos não são poucos, nem são secretos; basta só um pouco de atenção para dentro de si mesmo e para quem estiver ao lado. O que mais há por aí é gente com o choro preso na garganta. Gente que não para de contar piada ou de forçar o riso porque, se parar... gente que não se dá a chance de rever a própria vida porque, se fizer isso...
Mas então,  quando aparece alguém como o Laerte, ou como o tal rapaz anônimo do shopping, com coragem para aceitar-se plenamente... como é que reagimos?
Nossa tendência é a crucificação. O escárnio, mesmo que velado. A ridicularização. Será por inveja? 
Veja você que nem os mortos estão a salvo disso: dia destes, vi na Internet algumas biografias de Isaac Newton, Leonardo Da Vinci e Mahatma Gandhi, e ali estavam também os especuladores acerca da orientação sexual dos biografados. A hipótese da possível homossexualidade do trio baseia-se principalmente no fato de que Newton era muito fechado, Da Vinci nunca foi visto com mulheres e Gandhi optou pelo celibato apesar do casamento.

Passei alguns dias pensando em todas estas coisas e no final de tudo me lembrei de uma das frases preferidas do velho jornalista Ibrahim Sued, com quem trabalhei muitos anos atrás, e que não raro era também alvo de especulações ou maledicências. Uma frase que de tão libertadora, pode acalmar as tempestades que se formam no coração dos diferentes:
“Enquanto os cães ladram, a caravana passa”.

Isaac Newton, um dos gênios de quem sou fã

8 comentários:

  1. Seu post está supimpa! O botox comportamental é uma grande sacada. Esta idiotice generalizada de se preocupar com a sexualidade alheia já passou dos limites, convenhamos. Somos HUMANOsexuais e cada qual do seu jeito. Quem não gosta que não pratique ,ou não coma, ou não assista, ou não leia , ou não ouça, etc. Viver e deixar cada um viver à sua maneira, se em nada prejudica nossa vidinha medíocre.... é tão óbvio que raramente acontece, lamentavelmente.

    Se o rapazito em questão não está tão ansioso pelo carnaval a ponto de já colocar fantasia de mulher (típico de homem hétero), esta é a oportunidade de esclarecer melhor a quem acha estranho, ou até mesmo bizarro, esse negócio de homem heterossexual - que nunca teve desejo erótico por homens- que tem a fantasia de se vestir de mulher, em qualquer época,ou seja, ser CROSSDRESSER. Haja desejo e coragem como macho rs!“Como assim hétero que se veste de mulher fora do carná? Eu sou o Batman!” Claro que quem acha estranho isso tem o direito de continuar achando(na verdade todos(as) acham todos(as), indistinta e eventualmente, estranhos(as), sem exceções). O "serumano" além de esquisito, tem esquisitices mil rs. No entanto, convém sempre ter uma postura cautelosa antes de sair criticando o que não conhecemos ou não sentimos.

    Gays de fato e assumidos, identificam-se com o universo masculino a ponto de desejá-lo eroticamente.Não querem ser mulher, nem se vestir como tal. A sexologia separa, pelas especificidades, obviamente, gays, lésbicas, bissexuais, heterossexuais, travestis, transsexuais, etc...sendo as duas últimas classificações francamente identificadas com o universo feminino, a ponto da última fazer cirurgia de mudança de sexo, naturalmente.

    Outro detalhe: eu enfatizei anteriormente o fato de ser CD não ter nada a ver com ser gay, o que é verdade. Mas não quer dizer que toda CD seja heterossexual. Pelo contrário, existem as que saem com homens sim. Não vou esconder um aspecto bem “perigoso” do crossdressing: a fantasia de se ver como mulher pode acabar provocando uma certa curiosidade em querer estar com um homem. Afinal, se a imaginação de uma CD quer viver a experiência de ser uma mulher de verdade, é até natural que ela acabe por imaginar situações em que está se entregando a um homem (afinal para viver plenamente a experiência de ser mulher, só mesmo sendo vista como tal por um homem). Acredito que algumas vivam essa fantasia apenas na imaginação, enquanto outras acabam partindo para a uma situação real. Nesse caso acho que podem acontecer duas coisas: não gostar e nunca mais repetir ou acabar gostando.
    Mais curioso , na minha modesta avaliação, é o homem que se sente atraído por este universo "feminino" com genitália masculina.Freud explica.
    Santé e axé!

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  2. Fernanda,

    Pela descricao do seu primeiro paragrafo, eu vejo um lado do seu post diferente .....
    Varias hipoteses .....E se este rapaz estava apenas fazendo uma pesquisa, de como o ser humano se comportaria vendo-o vestido como mulher .... (embora o Marcos Lucio tenha nos lembrado, que estamos a vespera do Carnaval), ele tambem pode ser um ator (ainda nao conhecido), fazendo o seu laboratorio, pode estar fazendo uma tese sobre o comportamento do ser humano no seculo XXI..... mas eu acredito que se for o caso, ele chegou a triste conclusao, (nao para mim) que os seres humanos continuam mais pre conceituosos dos que os da Idade da Pedra .....

    Felicidades,

    Gilda Bose.

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    1. Olha, meu povo, eu acho que ele não era ator e não estava fantasiado para o carnaval. Será que estava fazendo uma pesquisa de comportamento???

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  3. Fernanda,

    Ja ia me esquecendo ..... como hoje em dia, as pessoas estao fazendo de tudo para aparecer e chamar a atencao ...... quem sabe nao seja esta uma das razoes ..... rsrsrsrsrs.

    Gilda Bose

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  4. Tô aqui e não consigo comentar nada. Digo apenas que seus textos são maravilhosos e envolventes.

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