quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O parente pródigo

Minha amiga chegou aos 87 anos sem ter visto, por muitas primaveras e muitos carnavais, alguns dos seus parentes mais próximos e queridos. Anos sem um telefonema... que dirá uma visita, ainda que breve. Embora não se queixasse nem mesmo de saudades, eu a conheço muito bem para saber da tristeza que derivava daí.

Mas eis que de repente os tais parentes começam a aparecer e ainda trazem os filhos, as flores, as caixas de doces e os pedidos de perdão. A isto explica-se: minha amiga está no fim, o que me faz crer que a volta do parente pródigo é mais motivada pelo amor a si mesmo do que pelo amor ao outro. É o medo da culpa futura, do arrependimento, da dor que emana do egoísmo.
Imagino que diante de tais aparições ao pé de sua cama, minha amiga possa então ter a real noção de seu estado, o que certamente lhe aumenta a angústia pelo medo de morrer. O fim da linha deve ser um lugar de muita solidão.

Os fantasmas de carne, osso e olhos cheios de lágrimas suplicam absolvição por seus pecados e, com isto, lhe acenam com a verdade duríssima da morte próxima. O conforto pela visita, neste caso, pertence ao visitante.
A doença, assim como o dinheiro, é como uma lente de aumento sobre as pessoas; mostra o espírito tal como é, seja do próprio enfermo, seja dos que lhe cercam (ou deveriam) nos momentos de luta e também nos derradeiros. A doença traz à tona nossa estatura espiritual, mostra de qual substância é feito nosso coração, joga luz sobre nossa coragem, nosso desprendimento e nossa fé. Nossa fé no futuro, ainda que ele não exista, ou nossa capacidade para encontrar um sentido para tudo, ainda que seja difícil enxergá-lo ou compreendê-lo.

Mas a doença nos mostra também o medo, a fuga, o apego, o vazio que vai no fundo da nossa alma... e que fazem desta experiência um pesadelo.
Haverá salvação?

Na extremidade oposta da linha do tempo, nossa outra amiga, tão jovem em seus trinta anos, faz filosofia com as palavras de certa celebração: “Na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença...” não têm a ver com o casamento, segundo a moça inteligente, mas com o amor em sua forma maior. E não é que ela tem mesmo razão? O amor, quando existe, não escolhe hora nem lugar; não elege situação ou circunstância. Ele simplesmente bate forte no coração da gente, sendo impossível de conter. Como diz um terceiro amigo, “quem ama quer estar junto”, e concluo que se isto vale para o momento do fim, deveria valer também para uma vida inteira.
 
 

9 comentários:

  1. Sensacional!
    Fernanda, você é uma alquimista das palavras!Gostei demais, obviamente que me identifiquei...
    Beijos, Andrea

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  2. Seus post é irretocável, queriDannemann, e nada a acrescentar, a não ser - levando-se em conta que há sempre os dois lados da questão - a dúvida do que pode ter acontecido , até mesmo por má interpretação....para "alguns dos seus parentes mais próximos e queridos" sumirem assim por taaaaaaaaantos anos.Serão somente descompensados ou extremamente esquisitos e/ou problemáticos? Deve ser cármico.

    Por isto é que se diz: “Amigo a gente escolhe, parente a gente ATURA”.
    Infelizmente, Deus não nos concedeu a graça de escolher os parentes, mas nos deu o privilégio de elegermos os nossos queridos, fundamentais e amados amigos.É na fase adulta que nos conhecemos melhor para também selecionar melhor os afetos. Os amigos formam o tecido de proteção social. Então, estes laços têm mais chance de serem (con) firmados justamente na maturidade, até para compreendermos e concluirmos que, assim como nós, amigos não são perfeitos. O estudo "A gramática amorosa da amizade", desenvolvido pela doutora em psicologia Daniele Brun pela Universidade de Paris (ah! Paris...), aponta, sensatamente, a amizade como relacionamento indispensável para a construção da identidade humana. Quanto à esta história de que parente é serpente, ou de que parente não é gente, não é bem assim ou só assim.Se pensarmos que nós também somos parentes de alguém...haveremos de convir - se formos éticos de fato - que , graças a Deus, como gente boa que somos... há, sim, honrosas exceções.
    Santé e axé!
    Marcos Lúcio

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  3. É isso aí, o amor simplesmente acontece. E quanto a esses parentes de porta de hospital, sua amiga, ao vê-los, vai ter mais convicçãp de que é hora de partir.

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  4. Fernanda,

    Eu espero que sua amiga, esteja bem espiritualmente, e que perdoe a todos, pois dessa vida nao se leva nada ......para que ela possa partir desta ..."leve e solta" .....e reza para ela nao sofrer muito.

    Acabei de perder uma grande amiga ..... que dor ...

    Felicidades,

    Gilda Bose

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  5. Bacana o texto, Fernanda, são bem contundentes as tuas observações. É isso aí mesmo.

    Uma coisa importantíssima na velhice é ter um círculo de amigos. Eu tenho uma prima que fez sua dissertação de mestrado sobre isso, tal a importância deste tipo de vínculo nessa faixa etária.

    Uma vez, assistindo ao programa da Ophrah Winfrey, vi uma cantora bem conhecida lá nos Estados Unidos (não me lembro o nome), que já estava chegando aos 70 e tinha tido câncer, dizer que se não fossem as amigas ela teria ficado muito deprimida. Fez questão de ressaltar que amizade é tudo quando se passa dos 60 anos.

    Na minha família tenho um exemplo disso: uma das minhas tias tem 89 anos e sai de segunda à segunda (rs). Um dia é um baile, no outro ela vai cantar num encontro de idosos, no outro ela vai representar e por aí vai. Pois se você coloca ela ao lado da minha mãe que tem 90 anos - ou seja, que tem somente um ano a mais - você vai perceber que a minha tia parece muito mais nova. Isso porque a minha mãe, apesar de ter uma curiosidade e interesse impressionante pelos temas da atualidade, é uma pessoa pouco afeita a construir amizades e, com isso, acabou se isolando das pessoas.

    Como diz um amigo meu: depois dos 40 o que você tem de bom melhora e o que você tem de ruim piora (rs).

    Pra finalizar, eu creio que a nossa sociedade nos passa a ideia de que a velhice é um estigma, quase uma doença com a qual a gente terá de conviver quando passar de uma certa idade. Só que o perfil dos novos velhos está mudando. Existe até um movimento chamado A Nova Terceira Idade que quer desfazer essa ideia de que na velhice só nos resta esperar a hora fatídica chegar (rs).

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    1. Vilma, querida, seu comentário é ótimo. Pra começar, concordo com o seu amigo, e por isso mesmo acho que a gente tem que se esforçar para potencializar o que temos de bom e minimizar o que temos de ruim. A velhice é um estigma mesmo, e isso é uma estupidez para os jovens e uma tristeza para os velhos. Quanto à "hora fatídica", ela vem para todos nós, e é realmente uma ilusão pensar que o "despertador" só toca para quem já viveu muito... beijão!

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  6. Eu sempre tive horror de olhar para morte, até que ela veio me dar um susto. Disse que era só uma brincadeira e foi embora, mas eu vivi tudo isso que vc percebeu na sua amiga. A absoluta solidão de quem não tem mais uma vida, tem uma doença. Tomara que eu ainda morra de queda de avião, bala perdida ou infarto fulminante! Morrer de doença demorada é horrível. Mas o comentário é: vc é muito perspicaz... como é que eu nunca tinha visto tudo isso que vc viu na sua amiga, antes de acontecer comigo?

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  7. Existem coisas que a gente prefere não ver. Desejo tudo de bom pra você.

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