Eu era bem pequena, devia estar pelos cinco anos, quando bati os olhos na ilustração daquela fábula. Foi num volume da inesquecível Coleção Fantasia que, pela primeira vez, identifiquei um indivíduo que achei fdp: o que, para mim, significa mesquinho, ávido por acumular e, finalmente, vingativo.
Lamento decepcionar alguns leitores __porque muita gente admira esta figura__ mas estou falando da Formiga que mandou a Cigarra morrer de fome e de frio em pleno inverno europeu. “Ah...” dirão alguns. “Mas a Cigarra cantou o verão inteiro!”. Como se este motivo justificasse a falta de generosidade da outra.
Como ainda não sabia ler, e dependia de alguém para me contar a história, muitas vezes tive que me contentar em apenas olhar as figuras, das quais me lembro até hoje em detalhes. Lembro do lenço vermelho de bolinhas brancas que a Formiga usava, e do seu indefectível avental... da cara sempre séria que ela tinha, típica de gente que só pensa em trabalho e leva a vida a sério demais... tão a sério que jamais se permitiria tirar um dia pra curtir o verão. Perdoar um erro? Ela não perdoa não, porque é perfeita demais e se dá o direito de exigir que os outros sejam iguais a ela.
E é claro que lembro da Cigarra! Do chapelão azul marinho, da viola na bolsa de tecido verde, dos sapatos aparentemente folgados nos pés (sim, deviam ser velhos, porque ela não ligava pra essas coisas). E lembro da ingênua alegria com que cantava, enquanto o verão ia passando... da inocência de quem ainda não aprendeu que a vida é linda mas também é dura... da fé inconsciente na generosidade do mundo.
E lembro do inverno. Da Formiga em sua casa com lareira e comida, dando lição de moral na Cigarra, que não passou da soleira, e, incrédula, ficou com os olhos marejados enquanto a outra lhe negava abrigo e soltava aquele veneno que a gente conhece:
-- Enquanto eu trabalhava, você cantava...
O resto da frase, que não estava no livro, era “e agora morra de fome e de frio!”.
Lamento que muita gente que leu esta história na infância, tenha crescido achando que a lei da Formiga está correta. O velho “olho por olho, dente por dente” que faz do ser humano um bicho desprezível. Ou será que a Formiga era juíza acima do bem e do mal, e tinha o direito e o dever de julgar os outros, condenando ao pior castigo __que é não receber ajuda de quem pode ajudar__ o indivíduo que não teve maturidade para entender que a vida é difícil?
Não teria sido melhor para todos __inclusive para os leitores__ se ela tivesse explicado à Cigarra que sim, na vida existe o erro e a conseqüência, mas existem também a generosidade, a amizade e as boas pessoas que, naqueles momentos em que estamos no fundo do poço, nos estendem a mão?
Se tivesse feito isso, quem sabe o mundo fosse um pouco melhor, porque as gerações que tiraram o pior ensinamento desta fábula talvez tivessem aprendido a ser menos egoístas e revanchistas. E talvez ela mesma, a Formiga, tivesse aprendido com a outra a curtir um pouco mais a vida; a ser mais leve e mais alegre; a dar menos valor ao “acumular”. De repente, tinha até aprendido a tocar violão...
Durante toda a minha vida, nunca me esqueci desta história nem das imagens que ela me deu, no livro e na imaginação. A cigarra de costas, indo embora tão triste, com a neve cobrindo parte do seu chapéu e da viola, guardada na bolsa de tecido verde.
Para quem não tem criatividade ou esperança, só há uma certeza: ela morreu sozinha, de frio e de fome.
Pois o meu amigo Luis foi quem me deu a notícia:
A Cigarra ganhou o Grammy!
É, meu caro... eu também levei um choque e custei a acreditar! Mas a
Cigarra encontrou quem a ajudasse, afinal nem só de Formigas é feito o mundo... ela aprendeu a importância do trabalho, mas nunca abdicou do seu sonho e do seu talento...
E a verdadeira moral da história é que a maravilha da vida é justamente que a vida dá voltas inacreditáveis... e a felicidade existe!
Qual instrumento você escolhe pra tocar a vida?
Mauro Pires de Amorim.
ResponderExcluirOlha o chato, detalhista, aquí de novo!
Quando eu for mais velho e esclerosado, já viu, né? Aí é que as pessoas vão fugir de mim, pois vou ficar repetindo 500 vezes as mesmas coisas!(risos).
Coitadinha das formiguinhas e das cigarrinhas, bem como os demais animalzinhos, uma vez que o mundo deles é diferente do nosso mundo humano, embora seja possível fazer comparações à partir de nossa visão de mundo e sociedade humana, sendo portanto, antropocêntrica, vindo a ser esse o sentido da metáfora da Cigarra e da Formiga.
Não vou ser redundante, especialmente porque comentei a situação do Município de Nova Friburgo, RJ, na postagem passada, sendo portanto a errada, já que pretendia fazê-lo nessa. Coisa de pessoa atabalhoada, que acaba errando. Mas enfim, penso que tanto a referida situação em Nova Friburgo, RJ, como a metáfora da Cigarra e da Formiga, numa visão antropocêntrica, portanto conceitual de nosso mundo e sociedade humana, estão intimamente relacionadas com a questão dos valores e prioridades sociais, bem como a ética. E com bem disse Berthold Brecht, autor alemão do Século XX. "Pobre do povo que precisa de heróis". Querendo com isso dizer, que todo o povo tem que ser o herói, fazendo seu melhor, dentro das possibilidades e alcances, sejam pequenas ou grandes, criando uma identificação ética em comum, não se deixando levar e iludir por ídolos.
Mais uma vez e sempre, sinceros desejos de felicidades e boas energias.
Mauro Pires de Amorim.
ResponderExcluirEsquecí de mencionar em meu comentário anterior, quando cito Berthold Brecht, o seguinte treço: onde todos são necessários e relevantes.
Felicidades e boas energias.
Mauro... voce não é chato! Pode repetir quantas vezes quiser, porque aqui os comentários são tão importantes quanto os posts, eu vivo dizendo isso! Abração!
ResponderExcluirMauro Pires de Amorim.
ResponderExcluirFoi só uma piadinha, brincadeirinha, que fiz comigo mesmo. (risos) Já pensou? Eu mais velho, esclerosado, repetindo 500 vezes as mesmas coisas e esquecendo outras! (mais risos ainda)
E as pessoas fugindo de mim, porque no final das contas, se fogem de mim por eu estar nessa situação, é sinal de que nunca tiveram uma real identificação e respeito para comigo. Portanto, prefiro estar só, do que mal acompanhado. De mais a mais, mesmo estando mais velho, esclerosado e sozinho, vou achar ótimo, porque no final das contas, vou continuar sendo quem eu sou, com minha autenticidade, fator esse que sempre tive. Quem se identificar comigo e me respeitar, que fique! (muitos mais risos ainda)
Felicidades e boas energias.
Vou, finalmente, realizar meu sonho de ser (um pouco?)sucinto: Você, queriDannemann, com todo respeito e admiração, é , certamente, a formiga que aprendeu a tocar violão. Esperta que só...consegue até varrer com o violão e tocar belas melodias com a vassoura...trocando em miúdos, mineirinhas danadas que nem "ocê", não fogem à luta..e, quando necessário, dão nó em pingo d"água... rsrs.
ResponderExcluirAbraço com afeto
Marcos Lúcio
Mauro Pires de Amorim.
ResponderExcluirCometí outro erro, fui escrever trecho e escreví "treço".
Eu acho é eu tô tendo um troço! (risos) Devo estar ficando esclerosado! (mais risos) Bêbado não tô, então só pode ser esclerose! (muitos mais risos ainda) Brincadeirinha! É que como sou ruim de teclado, de datilografia, os dedos não acompanham a velocidade do raciocínio e por vezês, ainda bato na tecla errada.
Felicidades e boas energias.
Não, EstiMarcos... definitivamente, eu sempre fui Cigarra, só que comecei a trabalhar bem cedo! Mauro... eu também vou ter um "treço"!
ResponderExcluir"Marrelógico" que um blog intitulado ALMA LAVADA, com esta pegada absolutamente existencialista, só poderia mesmo ser tão bem conduzido: com inteligência, talento, adequação e charme, por uma cigarra de nobre linhagem, como você, queriDannemann, que " "(en)canta"...seja ou não verão. Formigas são inábeis para delicadezas, complexidades, meditações, recolhimentos, alteridades, e sensibilidades várias...tadinhas, pois só labutam arduamente desde que nascem...viver bem já dá um trabalho danado, ato contínuo, sempre que possível (30 h. por dia, como aquele banco rsrs), sou cigarra.
ResponderExcluirCigarra
Milton Nascimento
Porque você pediu uma canção para cantar
Como a cigarra arrebenta de tanta luz
E enche de som o ar
Porque a formiga é a melhor amiga da cigarra
Raízes da mesma fábula que ela arranha
Tece e espalha no ar
Porque ainda é inverno em nosso coração
Essa canção é para cantar
Como a cigarra acende o verão
Abraço com afeto
Marcos Lúcio
Aê, Marcos Lúcio, aaaadorei o "marrelógico"! E é claro que você, cigarrona de boa cepa, iria sacar as coisas, não é meu caro???
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