Estou sempre dizendo que uma das melhores coisas de ser jornalista é poder telefonar para alguém que a gente admira e marcar um bate-papo. Numa dessas, uma vez conversei com a escritora de livros infantis Ruth Rocha, criadora de histórias deliciosas, que também ensinam adultos a olhar o mundo de um jeito melhor.
Naquela conversa, dona Ruth, uma senhora muito refinada, disse uma coisa que nunca saiu da minha cabeça:
-- Às vezes, pessoas desonestas ou que já te fizeram mal entram na sua casa pela porta da frente, se sentam à sua mesa para jantar. Por que é que a sua empregada, que limpa a sua sujeira, cuida do seu filho e faz a sua comida entra pela porta dos fundos e come na cozinha?
Nunca mais me esqueci destas suas palavras sobre a amizade __nem sempre reconhecida ou valorizada__ entre patroa e empregada.
Muitos anos depois, após fugir do marido violento com a roupa do corpo e quatro filhos na bagagem, veio parar à minha porta a Juliene, para quem entreguei a minha casa. Tão humilde quanto digna, esta moça negra, de 33 anos, já passou por faltas e horrores que nós, mulheres da classe média, sequer imaginamos em nossos piores pesadelos, e sozinha, sem ajuda de psicanalistas ou calmantes, deu lá seu jeito de não olhar para trás.
Fome, injustiça, ameaças, violência e humilhação fazem parte do cotidiano das mulheres negras e pobres tanto quanto restaurante, shopping center, avião e perfumes (que eu aliás detesto) constituem a vida das brancas do asfalto. Mas quem é que pensa nisso? “A vida é assim”, costumamos dizer, e bola pra frente.
Depois de três anos pegando pesado na faxina, sem ajuda de família ou pensão de ex-marido, Juliene outro dia foi abrir uma poupança no banco, porque quer comprar uma casinha. Fui junto para participar de um momento tão especial, em que os primeiros tijolos do sonho dela estavam ali, amassados entre os dedos, na forma de duas notas de cem reais.
Fechamos os olhos para a má-vontade do atendente, até que ele se negou a abrir a conta porque o comprovante de residência não servia, e encerrou a conversa. Pedi, implorei. Lá pelas tantas, disse que só o gerente podia resolver.
Mas o gerente... era uma mulher de perfume caro e salto alto! Depois de várias negativas dela, tentei um último lance: olhei fixamente nos olhos vivos daquela loura com ares de executiva, de pele muito tratada, e pedi baixinho:
-- Olha pra ela.
Juliene estava sentada diante do balcão, com seus duzentos reais amassados na mão, junto com os documentos, com cara de quem considera a derrota normal.
-- A vida dela é muito difícil. Tudo é muito difícil para ela – murmurei, como se estivesse me referindo a um ser de outro planeta, totalmente diferente de nós duas.
Vi quando os olhos da gerente pararam sobre Juliene. Não sei o que se passou em sua cabeça naqueles segundos em que ela ficou olhando, mas o que quer que tenha sido, me pareceu despertar nela uma luz de identificação. E acabei lembrando da conversa com a Ruth Rocha.
-- Abre a conta – ela disse, decidida, diante da surpresa do atendente e da própria Juliene.
Enquanto voltávamos para casa, e Juliene comemorava os primeiros tijolos de sua casa, pensei naquelas três mulheres tão diferentes e senti meu coração aquecido pela convicção de que um ser humano, quando realmente olha para outro, é capaz de deixar brotar o bem em seu coração. Será assim que nos tornamos iguais?
Mauro Pires de Amorim.
ResponderExcluirNa minha casa, temos uma empregada doméstica que trabalha para nós há mais de 20 anos. Ela mora na Favela da Maré e chama-se Graça.
Para conseguir abrir uma conta num banco, minha mãe foi com ela. Não sei como fez, mas o fato é que toda correspondência bancária dela vem para nosso endereço. Isso não é o menor problema, pelo contrário, pois ela é pessoa muito digna e de inteira confiança, que em pelo menos 15 anos ou mais de correntista bancária nunca deixou sua conta no déficit, muito pelo contrário, estando sempre depositando em sua caderneta de poupança.
Concordo que quando o ser humano olha para o outro despido de rótulos, esteriótipos fúteis e segregacionistas que nos são culturalmente incutidos por estigmas e estratificações, consiga ser melhor e deixar a verdade fluir.
Mesmo a gerente do banco, apesar de apresentar-se esteriotipada "embrulhada para presente", sabe e sente exatamente isso. Apenas usa aquela apresentação como um padrão de exigibilidade do sistema ou empresa, como quem usa um uniforme. Aliás, o termo uniforme, já diz tudo isso que mencionei!
Felicidades e boas energias.
É verdade Fernanda,a gente que trabalha fora,precisa ter uma pessoa de inteira confiança,para cuidar da casa,dos filhos,e na maioria das vezes,não damos o devido valor a esta pessoa... Bjs.
ResponderExcluirMonica.
O maior elogio que já recebi foi do seu Edward, um suíço que já morreu de tanto fumar. No mesmo dia em que nos conhecemos pedi a ele que me emprestasse uma peça (ferramenta) que valia pelo menos uns 3.000 reais. Ele, de imediato mandou que colocassem a peça no meu carro e, contrariando a minha própria promessa, devolvi a peça um dia depois do combinado, pois o serviço em que eu estava envolvido me deixou quase louco. Quando cheguei com a peça para devolvê-la ele disse: __ Allfred, sua sangue de alemão, mas seu alma de crioulo. Seu Edward não imaginava o tamanho da verdade, descontado o preconceito dele, que ele me disse. Me descobri assim, envolvido com a causa negra, do nosso negro, do meu negro. Negro sem a censura, sem a preocupação, admirando tanto, que descobri estar melhor negro do que branco no país em que a identidade mora em outro lugar.
ResponderExcluirFernanda,
ResponderExcluirGosto do jeito que voce escreve.
Ja tinha lido esta sua cronica no JB, e achei muito bacana, e verdadeira. Fico feliz com a sua iniciativa, ao conversar com a gerente de modo que a mesma se colocasse no lugar da Juliene. Voce viu, ela nao era apenas uma executiva. Seria bom se todos nos tivessemos essa mesma postura.
Infelizmnente o preconceito exixte e nao so em racas, e sim em tudo: religiao, classe social,
tipo fisico, cultura, etecetera e tal.... enfim cada um quer ser melhor que o outro.
Felicidades,
Gilda Bose