-- Como faço pra ir ao banheiro aqui?
Instintivamente me encolhi para o lado oposto e
respondi incomodada:
-- Aqui não tem banheiro não.
(Fiquei satisfeita por poder me livrar rapidamente dele e comer minha lasanha em paz, mas o homem voltou à carga):
-- Não tem banheiro?!(Fiquei satisfeita por poder me livrar rapidamente dele e comer minha lasanha em paz, mas o homem voltou à carga):
Olhei para ele, meio de soslaio. Era um senhor por volta dos 75, usando um terno azul- marinho surrado, sapatos marrons e segurando uma velha mala estilo 007. Tentei de novo:
-- Ali na padaria da esquina tem.
-- Aqui ao lado?
Ele foi saindo antes que eu pudesse dizer que não,
não era ao lado, era mais à frente, lá na esquina. Deixei a lasanha no balcão
por uns segundos e fui até a porta para vê-lo melhor: caminhava de um jeito
meio incerto pela calçada.
Voltei ao almoço mas o prazer já tinha se mandado. “Deve
estar com fome... por que não ofereci uma lasanha pra ele? Um copo de
coca-cola?, tá um calor de rachar!”.
Comi rapidinho o resto que estava no prato e corri pra padaria; na
verdade uma “boulangerie” metidinha a besta, daquelas sofisticadas que agora se espalham pelo
Rio.
-- Apareceu aí um senhor de terno azul pedindo pra
ir ao banheiro?
O garçon não sabia dele, nem a moça do caixa. Ainda
procurei pelas imediações, mas o homem tinha desaparecido; fiquei ali, no meio
da rua, tentando saber o que fazer com a sensação ruim que subitamente
tinha invadido o meu dia.
A gente é assim: se encolhe quando um desconhecido
se aproxima, e principalmente se ele parecer necessitado de alguma coisa, seja
uma informação, um copo d´água, uma moeda pra inteirar a passagem. O individualismo característico da sociedade urbana e capitalista já
deixou de ser um sintoma cultural para tornar-se genético e fazer de nós
animais concentrados unicamente na própria satisfação... como se disso
dependesse a nossa existência inteira.
E o pior é que a gente considera isso normal, e até
necessário: não dá pra viver dando informação o tempo todo, nem pagando
almoço , copo d´água ou passagem de ônibus pra todo necessitado que aparece...
sem falar nos golpistas que vivem da ajuda alheia... “eu é que não vou dar mole
pra Kojak!”.
Mas olha, também não dá pra viver de olho só na
nossa vidinha, sabe como é? Não tem como a gente se concentrar unicamente na lasanha
que está comendo, e o resto que se dane porque a vida é assim mesmo. Isso nos desconecta do mundo, dos outros seres humanos, da vida em seu sentido
amplo de “coletividade”. Isso nos afasta até do significado da palavra "humano".
A gente corre atrás de grana, de status, de uma
aparência legal, de conhecimento, de “poder”... “poder” bancar uma vidinha
legal, “poder” ostentar o sucesso profissional que conquistou, “poder”
acreditar que deu certo na vida, "poder" ser sexy e atraente... e deixa de olhar para o lado porque, se
olhar, aquele homem de terno azul vai estar ali, estragando o prazer do nosso
almoço ao perguntar onde é o banheiro e mostrando, em seu aparente cansaço, que
está com fome sim, que seus sapatos são velhos, seus cabelos estão brancos, seu
rosto está sem esperança... e a gente, bem diante dele, não está nem aí!
O que realmente estragou meu almoço e o meu dia não
foi o desalento daquele homem, e sim eu mesma, e esta constatação foi o pior: nossa porção "humana" é infinitamente menor que o animal selvagem que nos habita... e talvez seja entre estas duas forças a grande batalha individual de todos nós.
Nooooooooooooooooossa!!!. Para nosotros mineiros de boa cepa... seria: Nó! (abreviação de Nossa Senhora do Sagrado e Perpétuo Socorro de Jesus Maria e José).
ResponderExcluirSou admirador confesso e adicto dos seus posts, mas este, especialmente, deixou-me tão emocionado com a precisão das palavras e colocação do dedo na ferida destes tempos desumanizados, e estúpidos e neoliberais competitivos...e insanos e infelizes...que vou somente aplaudir e fazer minhas suas benditas e bem ditas palavras. Vi-me integralmente na sua situação, neste excelente texto filme.
Adooooooorrei!!!
Santé e axé.
Marcos Lùcio
Texto-filme? Ganhei a noite!
ExcluirCada dia eh um dia. Normalmente acordo monosilabico, quando muito. Com o passar das horas vou me tornando "gente civilizada".
ResponderExcluirPessoas sao diferentes e responder curto -creia- eh algo comum. Nao se trata de educacao mas de como voce esta.
Ja passei por situacoes onde agi (parece ateh uma palavra japonesa, neh?) de uma maneira para, de pronto, cair na real e descobrir que nao fui o cara que sou.
Nao se culpe. Acontece. Serve para entender um pouco mais sobre nos mesmo. Que somos doces e salgados dependendo de fatores.
Ariel, acho que nunca mais vou me esquecer daquele senhor e da situação. Espero que da próxima vez eu aja diferente.
ExcluirFernanda: É verdade o que você falou. Uma vez chegou um senhor ao nosso portão e perguntou se sabíamos de alguma casa para alugar e eu respondi com outra pergunta: __O senhor já almoçou? Ele respondeu que não e eu abri o portão e pedi para que pusessem a mesa. Aquele senhor comeu com uma educação e com um prazer que jamais pude esquecê-lo. Não estou bancando a coruja que gaba o toco,... apenas quero lembrar que justamente devemos estar atentos, mais atentos para os momentos surpreendentes em que acabamos por nos encontrar... que não é proporcionado pelo acaso.
ResponderExcluirAlfredo, você é uma pessoa especial demais: por isso é que convidou o homem para o almoço. Garanto que ele nunca te esqueceu.
ExcluirBelo texto, uma reflexão para ser feita diariamente.
ResponderExcluirLembrei de algo que merece ser dito: Numa das idas ao Brasil estavamos (eu e esposa) numa Pizza Hut ou Domino's numa esquina da Copacabana. Um pouquinho depois que chegou o nosso pedido entraram varios meninos de rua (diria que entre 8 e 14 anos) pedindo comida numa maneira agressiva do tipo "vou pegar na mao grande!". Disse para ele contar quantos eram e pedir uma pizza e uma soda para cada um que eu pagava. O menino sorriu, saiu, voltou, ordenei, comeram e todos falaram "Obrigado", "Valeu, tio" e coisas assim.
ResponderExcluirGanhei o dia!
Valeu mesmo, tio!
ExcluirFernanda,
ResponderExcluirO "xis" da questão é o tempo que vai entre a nossa reação de fazer de conta que não é conosco e a nossa capacidade de reconhecer naquele desconhecido um semelhante. Quanto menos praticamos este tipo de reavaliação, mais lenta a mudança de posição e menores as chances de vencermos as mossas batalhas individuais. Quanto mais praticarmos maiores a chances de paz conosco, sem necessariamente achar que estamos caindo nos golpistas ou aproveitadores. Virtus in medius est e o hábito faz o monge.
[] André - Rio
Andréééééé!!!!!! Você falou tudo! Ao ler suas palavras me senti tendo um insight no divã do psi. Acho que é isso mesmo. Aliás, na hora eu senti exatamente isso: cheguei a pensar que tinha tido uma compreensão tardia sobre ele, ao vê-lo caminhar pela calçada.É uma pena que você participe tão pouco das conversas aqui no blog, porque sempre que resolve abrir a boca virtual, diz coisas tão legais...
ExcluirO André "matou a cobra e mostrou o pau"..sem trocadilhos, evidentemente. Valeu!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluirNesta madrugada mesmo, na Lapa, um rapaz de pouca idade, branco, sem um dente , pelo que pude perceber, e podem faltar mais alguns, e com roupas imundas, pés idem, cabelos idem, mochila idem...abordou-me civilizadamente:"desculpe, posso falar com o senhor?"
Apesar de um pouco (quase nada, pasme!...alguns mineiros de boa cepa possuem predisposição etílica rs...) alterado por algumas doses ingeridas em boa festa...fui rápido no gatilho e mirei _perscrutadamente_seus olhos. Quase chorei em ver tanta desilusão em olhar de pessoa tão jovem e ainda com resquícios de "beleza". Dio mio!!!
Como estava apressado para outro compromisso, acreditei nele e fui logo metendo a mão no bolso. Se é um "ator", mereceu meu simbólico cachê.
_Não precisa, não estou com fome e já fui insultado e ninguém parou para mim, até agora...só o senhor...mas se o senhor puder fazer o favor de ir até uma pensão aqui próximo e pagar um banho para mim, é tudo de que preciso. Não sei porque cargas d"água, vi-me na situação dele (sabe-se lá...). Realmente o humano não é alheio a mim, ainda, e não classifico os seres como inferiores e superiores.
Como não dispunha deste tempo, perguntei: quanto é o banho? E ele: "7 reais". Coincidentemente o único trocado no bolso era uma nota de 10 reais que não titubeei em dar-lhe. Ele abriu um sorriso e ainda disse que bastavam 7. Só tive tempo para dizer que estava "oquei" e que ele deveria fazer_se conseguisse_ todo o esforço possível para sair desta situação/vida sem futuro. Ele jurou que estava tentando. Meu Deus... tomara que ele consiga.
Desejei-lhe _com toda sinceridade possível_ que conseguisse vida melhor, no mínimo mais digna. Jamais vou esquecê-lo. Este pobre moço fez a mim um bem danado, ele nem imagina...
Abraço
Marcos Lúcio
EstiMarcos... nem sei o que dizer. Queira Deus que o rapaz tenha uma boa oportunidade na vida...
ExcluirComo analisada, que é, você sabe, que foi acometida, pelo poderia, deveria... conjugação da culpa. Ocorre com todos nós, principalmente, em situações como a descrita, em que o desejo de ajudar, luta inconscientemente, com o medo de ser agredido, de algum modo, por aquele ser necessitado de algo, que surge diante de nós.
ResponderExcluirÁs vezes, como citou um leitor, demoramos, demasiado, sobretudo, para o necessitado, à decidirmos conscientemente, pela solidariedade, quando pertinente.
Esteja certa que, infelizmente(são muitos os necessitados de muitas coisas), terá outras oportunidades,de, no timing certo, decidir com clareza emocional e cognitiva.
Abraço e bom domingo.
ANTONIO CARLOS
É, Antonio Carlos, eu sei. A gente precisa aprender a se disponibilizar mais. Tudo é mesmo aprendizado nesta vida... bom domingo pra você também!
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