Eu olhava a fila indiana de macas pelos corredores,
os pacientes enrolados em lençóis e cobertores velhos, tecidos com o fio da
resignação... e aqueles que esperavam horas, talvez dias, por um atendimento;
alguns com a sorte de uma cadeira onde se sentar, na sala abafadíssima, outros
de pé, esgueirando o cansaço pelas paredes.
E olhava as instalações, de uma precariedade
inimaginável para quem tem a felicidade de desfrutar de um plano de saúde
privado neste Brasilzão de meu Deus... sentia no ar um cheiro abafado, talvez mistura de calor, de água sanitária, de
remédio ou justamente da falta dele, de desesperança e de pobreza.
Mas no meio de tudo isso havia os heróis da rede
pública, aqueles caras que de fato examinam o paciente, em vez de apenas
assinar uma receita de antibiótico e gritar “próóóximo!” com o carimbo da
indiferença no olhar, e que não pagam substitutos em início de carreira para que
lhes cubram os plantões.
Em meio ao que me parecia um verdadeiro caos e me
provocava calafrios pela espinha, os doutores caminhavam numa desenvoltura quase
majestosa, e era bonito de se ver. A pobreza generalizada, na forma de mofo
pelas paredes, de falta de equipamentos e de remédios, de refeitório que virou
sala de espera, de improviso por toda parte, de gente extremamente humilde e
submissa à necessidade... nada disso parecia lhes melindrar.
-- E o Fluminense, hein, ô negão? Ô time de sorte...
-- Fluzão é time de fé, meu rei...
O papo rolou entre o médico (meu amigo) que vinha pelo corredor
e o enfermeiro que voltava; entre ambos, a maca que carregava o acidentado
grave. O doutor percebeu meu espanto e explicou:
-- Aqui, se a gente olhar só pra desgraça, não
consegue fazer nada.
Dias depois, dei entrada em um dos melhores
hospitais da cidade para um procedimento cirúrgico estético, na mão de um
bam-bam-bam dos bisturis. Era pra ficar apenas uma noite no hospital cinco
estrelas, mas decidi ficar cinco para favorecer o pós-operatório.
Quando saí, mal conseguia falar ou respirar, dado o
nível de fraqueza: a comida talvez fosse ótima, mas o fato é que eu não conseguia
comer pratos como “linguado ao molho de ervas aromáticas” depois de uma
cirurgia! O café da manhã era realmente sofrível, e tudo o que eu queria era um chá, uma torrada, uma fatia de
mamão... seria pedir demais?
Na hora do almoço, como é que eu, cheia de fios nos braços, ia partir o bife? A
enfermeira colocava a bandeja na mesinha ao lado da cama e vupt! Saía do quarto
antes que eu pudesse pedir que me ajudasse a comer.
As bandejas voltavam intocadas para a cozinha, e
ninguém naquele hospital chiquérrimo apareceu para saber o que estava
acontecendo. Chamei a nutricionista e implorei por uma sopa, um bife grelhado
que já viesse picadinho, um legume no vapor. Ando pensando em procurar a
instituição e me candidatar ao emprego dela...
As enfermeiras são um capítulo à parte. Afora três,
que me trataram bem, todas as outras foram surpreendentes. Senti, no ar, o
ressentimento de algumas delas, que pareciam odiar seu trabalho e acabavam
descarregando seus sentimentos represados no paciente... que no caso era eu
mesma, que tomei quase todas as injeções para dor, gelatinosas e dolorosíssimas,
no mesmo braço. Eu colocava o travesseiro no rosto para gritar, pode uma coisa destas? E tomei banho
de água fria, e cheguei a ficar sem remédio... e houve dia em que tive que quase implorar pelo
banho.
Já em casa, dei graças a Deus por finalmente estar
livre dos maus-tratos, e embora recebesse tratamento vip do “enfermeiro
particular”, passei dias desesperada entre dores e cansaço. Liguei para o
médico. Não o que me operou, mas sim aquele amigo que dá plantão nas
emergências cariocas. E descobri que estava sem remédio para dor e sem
tratamento para a anemia que se instala imediatamente, quando a gente perde
muito sangue em uma cirurgia.
Como se vê, mais uma vez é impossível não voltar às palavras da dra. Vera, minha sábia
amiga octagenária, médica politizada e engajada, que sempre me diz que a saúde carioca é terra de Marlboro:
-- Fernanda, no Rio de Janeiro, não importa se é
rico ou se é pobre, se tem plano de saúde ou se vai pra rede pública: a gente
tem é que rezar muito pra jamais cair na mão de um médico ou na cama de um
hospital.
Fernanda,
ResponderExcluirAdorei seu post.
Espero que voce esteja se recuperando e bem.
Sabia as palavras de sua amiga dra.Vera, "a gente tem que rezar e muito ....." , me emocionei com sua descricao do hospital publico quando voce cita "os doutores caminhavam numa desenvoltura quase majestosa", e a frase do medico pra voce: "aqui se a gente olhar so pra desgraca nao consegue fazer nada".
Felicidades, e se cuida.
Gilda Bose
Mais uma vez e sempre?! ...o Rio evidencia seu carma de purgatório da "beleza" (um dos melhores hospitais da cidade utlilizado em nome da beleza e não, graças a Deus, por questão de saúde prejudicada, ainda bem!!!) e do eterno caos dos hospitais municipais ainda em 2014, ano Copa, etc.É de se envergonhar, né?
ResponderExcluirPor experiência própria concordo, "ipsis verbis":
" Como se vê, mais uma vez é impossível não voltar às palavras da dra. Vera, minha sábia amiga octagenária, médica politizada e engajada, que sempre me diz que a saúde carioca é terra de Marlboro:
-- Fernanda, no Rio de Janeiro, não importa se é rico ou se é pobre, se tem plano de saúde ou se vai pra rede pública: a gente tem é que rezar muito pra jamais cair na mão de um médico ou na cama de um hospital".
Só acrescentaria duas cositas: Uma é que rezo para continuar podendo pagar plano de saúde e, de preferência, nunca, jamais, precisar utilizá-lo.Outra é que a carioquíssima terra de Marlboro , lamentavelmente, não se restringe somente aos hospitais públicos."E la nave va"...até quando?!
Na verdade, o que quis realmente dizer é que torço ,sinceramente , para a rápida e saudabilíssima recuperação da talentosa blogueira que terá, evidentemente, um excelente resultado desta intervenção cirúrgica estética... com a proteção e a ajuda do "TODOPODEROSO", marrelógico!
Santé e axé!
Marcos Lúcio
Cara Fernanda, se você se sentiu abonada, sendo tratata em um hospital particular. imagem nos pobres coitados tendo que se sujeitar nos hospitais publicos, cuja a finalidade é acabar com a vida do próximo. Médicos indeferentes, enfermeira estúpidas e atendentes sem educarção. Estamos entregue a própria sorte.
ResponderExcluirCaro leitor, creio ter faltado um pedaço da palavra, mas entendi seu recado. Sim, me senti abandonada. E o post fala exatamente do quanto todos os pacientes, seja nos hospitais públicos ou nós particulares, estão entregues a (faltou a crase neste teclado) própria sorte. Mas reitero aqui que conheço alguns médicos de verdade nos públicos, a quem recorro via telefone quando a coisa aperta, pois tenho a sorte de te-los como amigos e sei de sua verdadeira dedicação.
ExcluirDemais!
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