sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O pai que não censurava

Pleno dia de férias escolares no Rio de Janeiro. O cinema tem 18 salas, a maioria ocupada por filmes infantis. As filas estão enormes, e em meio a tudo isso estou prestes a entrar na sala para ver “O lobo de Wall Street” quando ouço o bilheteiro murmurar, quase suplicante, à pessoa à minha frente:

-- Senhor, este filme é pra quem tem mais de 18 anos...
O lance é o seguinte: ali está o homem, de mais ou menos 45 anos, e o filho, de cerca de nove ou dez, ambos com um saco de pipoca enorme e um copo de coca-cola gigante nas mãos.
Silêncio constrangedor. O homem encara o bilheteiro com um olhar vazio naquela pausa que parece durar duas horas. O rapaz insiste.
-- Dezoito anos. Filme pesado...
O homem volta o olhar vazio para o garoto e faz sinal de “vamos” com a cabeça. E vão.
Incrédula, e já esperando o pior, não aguento e pergunto ao bilheteiro que filme estão indo ver, e não deixo de notar um certo inconformismo em sua voz.

-- O “Lobo”...
-- Mas o filme não é proibido para menores de 18?

-- Senhora, a última palavra é do pai. Se o pai autoriza, a lei não proíbe, e a criança pode assistir um filme como este aí, cheio de cenas de drogas e de sexo...
Em suma: o tal pai saiu de casa para levar o filhote ao cinema nas férias, mas em lá chegando... não teve saco de ir ver um filme infantil... e levou o garoto pra encarar um filme adulto mesmo.  E ele que se divirta com a pipoca, ora bolas!
Lá dentro,  a história de três horas tem muito estresse, muita cocaína, balinha, festa do “tá todo mundo pelado”, muito grito, muito cigarro, muita bebida, muita sacanagem de naturezas diversas... muito de tudo o que um pai, em sã consciência, jamais aproximaria do imaginário de um filho de nove ou dez anos.

O filme é muito longo e cansa, é bem verdade. Di Caprio está cada vez melhor, o que não nos surpreende. As cenas em que discursa para seus empregados são incrivelmente metafóricas e nos remetem mesmo a situações de fanatismo absoluto, como aquele das igrejas evangélicas e seus pastores eletrônicos, ou de como deve acontecer nas matilhas de lobos de carne e osso, prontos para a caça e espumando o apetite pela carne dos cordeiros... tudo a mesma coisa, no final.
E eu via o filme e pensava no garoto de nove ou dez anos, em alguma poltrona do cinema, assistindo tudo àquilo... como estaria processando aquelas informações bizarras e incompreensíveis, que jamais sairiam de seu cérebro? De que forma elas voltarão à tona, em algum momento do futuro? Angústia? Revolta? Imitação?

Não bastasse a criançada engolir tanto lixo na TV aberta e na TV a cabo, nos jogos eletrônicos e até na literatura infanto-juvenil, que já está descobrindo o nicho violência/sangue/morte/etc, não me surpreenderei se virar lugar-comum criança em filme para maiores, já que não é a primeira vez que vejo uma situação como esta. Talvez os pais avaliem que, se as novelas já mostram tanto sexo escancarado e tanta mau-caratice, os filhos podem ver tudo.
No final das contas, concluo, é isso que dá a censura ficar a cargo dos pais, os guardiões do bem estar da criança... e que, infelizmente, nem sempre têm condições intelectuais ou afetivas para desempenhar tal papel.

E aí, quando alguém levanta a voz para dizer que não pode tanta liberdade na TV, que alguma censura tem que existir para ajudar os incapazes a botar um limite na situação, a horda é quem grita, sobretudo na imprensa, para dizer que censura é coisa do diabo. Calma, devagar aí: tudo vai depender de como se faz as coisas. Censurar a informação é sim, coisa do diabo, mas censurar o sexo, a sacanagem, a violência e os interesses das grandes empresas nos meios de comunicação de massa é outra bem diferente. Ou não é?

Uma coisa é certa; dar liberdade total a quem não sabe o que fazer com ela só pode acabar em problema, e dos sérios. Não é assim que se educa alguém? E se os pais que temos aí também carecem de educação... como é que vão dar aos seus filhos o que não têm?

As condições intelectuais estão em falta sim, pois há muitos pais ignorantes por aí, que não alcançam que criança não é adulto, que filho não é amigo, que educar exige dizer não. Gente que fez mestrado e doutorado, que tem muito dinheiro no banco... mas discernimento não tem nada a ver com dinheiro ou com títulos acadêmicos, e no final, o que acontece é que sobram pais despreparados e para quem tudo é normal demais, gente que não entende que a mais valiosa herança que se deixa para um filho é a boa educação e uma cuca legal, com autoestima no lugar e fé no futuro.

Mas como ter autoestima no lugar ou fé no futuro assistindo coisas horrorosas na TV e no cinema? Como, se os pais não desempenham seu papel de educadores, e ao invés disso bancam os coleguinhas?

E claro, faltam a estes pais as condições afetivas porque, infelizmente, não são poucas as pessoas que botam filho no mundo apenas porque necessitam de alguma coisa que lhes ocupe a vida... mas no fundo, não têm amor nem paciência, nem vontade nem disposição para educar de verdade: e aí criam filhos literalmente sem-educação, sem limites, sem cuidados. Compram o afeto dos rebentos com dinheiro vivo, porque isto é mais fácil do que educar de verdade. Temos aí uma legião de ricos sem educação para comprovar o que estou dizendo.
E é assim que o mundo vai ficando cada vez mais parecido com o filme do Leonardo Di Caprio: uma imensa matilha de lobos que só pensam em diversão e em devorar quem for preciso, em nome da própria satisfação. Mesmo que seja a infância do filho de nove ou dez anos, e este filho, quando crescer, há de fazer pior ainda, pois terá aprendido muito bem a sua lição.

12 comentários:

  1. Fernanda,

    UAU ... adorei seu post, e concordo com voce 100% ..... vi o filme e tambem achei cansativo ....voce o descreveu muito bem .....Parabens !!! Leonardo Di Caprio esta excepcional no paplel ....
    Agora, infelizmente os pais sao sim culpados pela boa e pela ma educacao dos filhos, e na vida tem que haver regras, nao tem jeito .... e tambem e por esta razao da falta de respeito de ambos os lados pais e filhos .....o pai quer ser filho e o filho quer ser o pai ..... nao da.

    Felicidades,

    Gilda Bose

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    1. Gilda, eu adoro o Di Caprio! Mas o filme me deixou tão cansada que quase saí antes do final...

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  2. Otimo post. Uma licao de vida.

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  3. Quando eu era piqueno, minha mãe me levou pra ver Cracatoa, o inferno de Java. Lembro da multidão fugindo em barcos da ilha onde ficava o vulcão.

    Zé Fofinho de Ogum

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  4. O post , quanto a pais e filhos é irretocável e o recado está bem dadíssimo, na minha modesta conceituação. Quanto ao filme ainda não vi, não posso avaliar.
    Destaco, dentre inúmeras pérolas, estas: "E se os pais que temos aí também carecem de educação... como é que vão dar aos seus filhos o que não têm?"; "não são poucas as pessoas que botam filho no mundo apenas porque necessitam de alguma coisa que lhes ocupe a vida... mas no fundo, não têm amor nem paciência, nem vontade nem disposição para educar de verdade: e aí criam filhos literalmente sem-educação, sem limites, sem cuidados".Bingo!

    E vamos combinar: falta de limite é o pior e o mais anti-natural que se pode fazer na criação de uma criança, pois até o tempo de duração de uma vida é limitado. Tudo tem ou deve ter limite, se houver um mínimo de bom senso.
    Como já comentei o filme anterior:Álbum de família, onde a repetição do papel comportamental (patológico) da mãe- por conta da mãe igualmente doentia que teve- acontece com a filha, é uma evidência solar que a mãe muitas vezes revive e repete com a filha as dificuldades que teve com a própria mãe. No livro "Criando meninas" (Ed. Fundamento), a psicóloga e terapeuta familiar Gisela Preuschoff compara essa conexão com as matrioskas, aquelas bonecas russas coloridas que trazem uma boneca dentro da outra. "Elas representam claramente essa relação tão próxima: geração após geração, uma mulher emerge da outra", escreve. O Belchior disse bem e com propriedade: "ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais".
    Santé e axé!
    Marcos Lúcio

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    1. Vi o filme.A abominável (e insustentável...não dá pra todos ganharem trapaceando) cultura de ser mais esperto, de blefar, de passar a perna, escancarada no filme, casa com a evidente vontade de levar vantagem ou de querer ficar rico (topa tudo por dinheiro?!) da maioria absoluta dos americanos que acaba, por isto mesmo, caindo no conto do vigário/vigarista Jordan Belfort. Este clima neoliberal predatório, agressivo, (quase)terrorista - porque fundamentalista - é a uma das causas (a maior?) de tamanha barbárie social que se abate sobre a sociedade através da violência física, moral, insana e desumana que se observa nos ambientes da família, da escola, no trânsito, nas empresas etc.Os americanos têm a prepotência ou arrogância como "modus vivendi", até porque cultuam com fanatismo o delirante "destino manisfesto", além de incentivarem a agressiva concorrência (valendo também baixaria, suborno, drogas, etc.). Tornam-se, destarte, fóbicos quanto a "loosers" ou obcecados por "winners".É a história real, e recente, de Jordan Belfort, um ex-corretor da Bolsa de Nova York que foi condenado por fraude e lavagem de dinheiro e cujo livro homônimo deu origem ao filme. Milhares de clientes da corretora do “Lobo de Wall Sreet” nunca foram ressarcidos. Quem também se aborreceu com o lobo crápula , foi Christina McDowell, filha de outro ex-corretor entregue para a polícia por Belfort. Ela escreveu uma carta aberta a Scorsese, DiCaprio e a quem mais a carapuça servisse em que dizia: “Vocês pensaram na mensagem que enviariam para as pessoas quando decidiram fazer esse filme? Vocês tiveram muito sucesso em se aliar a um criminoso que exacerba nossa obsessão nacional por riqueza e status e que glorifica a ganância e um comportamento psicopata”. Mesmo nadando em outra praia... imagino o perigo da quantidade absurda de gente que inveja (in)conscientemente o perverso, ansioso, exagerado e ilimitadíssimo personagem.
      Santé e axé!
      Marcos Lúcio

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    2. O pior de tudo é a verdade subliminar: o comportamento psicopata - a falta de escrúpulos ou a sede de sangue deste predador, ultrapassando todos os limites - é o que os "coaches" do empreendedorismo gostariam de sugerir.Tanto é assim, que ao final do filme, este criminoso, lesador , golpista...é utilizado para dar palestras motivacionais ...o que de fato ele está fazendo naquele doentio país e, acredito, mundo afora...pois o povo incauto e inculto quase sempre, resolveu imitar o pior modelo(de dominação, exploração, violência) de "civilização". O que o Belfort faz -trapaceando e roubando o dinheiro alheio e até infartando pessoas que perderam todas as economias - é exatamente o mesmo que os xerifes ou os invasores americanos faziam nas tribos indígenas:escalpelavam e dizimavam-nos e, apesar da barbaridade, eram considerados "heróis ". O Belfort é o "herói- mocinho" e os acionistas, os "novos índios bandidos". Onde essa m. vai parar? Os péssimos resultados deste tipo de "empreendedorismo", ou concorrência predatória, massacrante, exterminadora... não permitem cumplicidade dos poucos lúcidos , pacifistas ou humanistas que (ainda) restam no planeta.

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    3. De fato! Onde vai parar? Somos produtos do nosso meio e cada filme, cada novela, cada notícia a respeito de um "se dar bem" - Vejamos as empresas "X"; Que parecem estimular o povo, se não a investir na bolsa, que ele não sabe nem onde é, mas, a comer com mais veemência, imprudência e sem consciência. Comer tudo de uma vez, hambúrguer, x tudo, ou mesmo x qualquer coisa. Foi muito direto e pontual o seu comentário. Tem coisa que não devia ficar guardado não. Devia ser posto em Outdoor em passagem obrigatória atravessando como obstáculo, justamente o poder da mídia e enfim, todos os poderes podres do mundo.

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    4. Obrigado Alfredo...até esqueci de assiná-lo. Pelo menos os poucos que ainda temos (alguma) consciência, devemos colocar os pingos no is e nos jotas, né?
      Abraço
      Marcos Lúcio

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  5. Vc lembra da cena em que a madrasta da Branca de Neve desce numa masmorra e tem um esqueleto tentando alcançar um copo d´água? Quer violência maior? Isso sim tinha que ser censurado. E as cenas da paixão de Cristo? Acho que vc está pecando pelo excesso de zelo. Faz parte da formação do ser humano "normal" deparar-se com muita coisa ruim - melhor que seja como espectador em um filme, não o filho ver a mãe se prostituindo, o pai bebendo e batendo na mulher e outras mazelas que tais. E esses que passaram por várias dessas desgraças como desamparo, miséria e violência acho que ainda são maioria. Vc nunca falou: vc é mãe?

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  6. Fernanda,

    No meu entender, o filme nao passa de uma denuncia, contra um sistema que existiu e ainda existe. Eh pesado ? Claro que sim. .......mas como todo filme as coisas tende a ser exageradas ...... Eh um exemplo a ser seguido? Nao......mas e um fato que aconteceu .....e ainda acontece nos melhores paises do mundo.

    Felicidades,

    Gilda Bose

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  7. O preço do prazer varia de acordo com o valor do mesmo. Um prazer sexual, por exemplo, pode chegar a navegação espacial. Tem uma cantora ai (acho que é cantora americana) - que pretende fazer amor (coisa absurda essa de fazer), fazer amor durante a viagem que a NASA vem prometendo ao custo de milhões de Dólares. Tem coisa como o filme " Proposta Indecente" propôs. Por essa razão, creio que Freud continua explicando. Tudo gira em torno do sexo e o filme do Capri, assim como novelas, funcionam mais como exposição de egos afetados do que qualquer outra coisa e, claro que o "poder + ego= mistura explosiva" . Amor não se faz, se exala. Amor é etéreo e nos atinge por vias de uma condutividade que possuímos naturalmente e, pela mesma via, passa também o ódio e daí a confusão da confissão - Matei por amor! Ora ora... Sem perdão não há evolução e o maior defeito do ser humano é negar o perdão. É isso. Só isso. Nada mais que isso.

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