Na ala feminina, fui abordada em particular, pela
primeira vez:
-- Tem perfume? Tem perfume?
Perguntou a senhora, bem velhinha, ao se aproximar
até ficar beeeeeem pertinho de mim.
-- Não tenho não.
-- Vai em casa buscar? Vai?
-- Vou sim.
-- Estou esperando...
E foi se afastando, dentro daquele vestido de algodão azulado, levinho, para dali a pouco voltar e passar por mim como se jamais tivesse me visto. Como se eu, na realidade, nem mesmo estivesse ali.
E foi se afastando, dentro daquele vestido de algodão azulado, levinho, para dali a pouco voltar e passar por mim como se jamais tivesse me visto. Como se eu, na realidade, nem mesmo estivesse ali.
Mais adiante, fiz minha primeira visita a um Centro
de Atenção Psicossocial, Caps, que no mundo ideal deveria ser a alternativa definitiva aos hospitais psiquiátricos, já que presta atendimento clínico e, somado a isso, promove a inserção social do portador de doença mental em seu ambiente de origem. Eu estava no Caps Bispo do Rosário, que faz parte do complexo da Juliano Moreira, onde há um centro de convivência e, ao lado, o Ateliê Gaia, berçário de arte do mais puro inconsciente a céu aberto. Rolava um evento, a casa estava cheia de gente, então me sentei em um banquinho sob a árvore, pra descansar do calor. Nessa hora, a
moça se aproximou:
-- Tem cigarro?
E foi assim que teve início uma boa conversa com a
namorada do meu artista plástico preferido, o Luiz Carlos, de quem aliás já
comprei dois quadros, em diferentes ocasiões. Luiz Carlos, hoje aos 40 anos, nasceu na Colônia Juliano Moreira, onde a mãe, esquizofrênica, foi vítima de eletrochoques na gravidez, razão à qual ele credita sua psicose. Depois que ficamos amigos, passei a ganhar um abraço sempre que nos encontramos, e ao me mostrar seus quadros ele não deixa de perguntar:
-- Quer tirar fotos?
-- Mas é claro que eu quero!
-- Quer tirar fotos?
-- Mas é claro que eu quero!
Bem... mas vamos seguir viagem! Ao lado do Luiz Carlos temos uma série de outros artistas, entre eles o Arlindo, 60 anos, na Colônia desde os 12 e hoje fora dela, assim como o amigo (Arlindo está na foto abaixo). Juntos, todos eles têm a sorte de fazer parte do time do Ateliê Gaia, também pertencente à Colônia, e onde a arte é remédio e estabiliza as crises, dá voz aos esquizofrênicos e possibilita que, com a venda de seu trabalho, os artistas exercitem seu poder de contratualidade e, com isso, resgatem sua cidadania.
Vejo quando os turistas estrangeiros compram algumas obras... os doidos fazem arte... e vendem bem!
Na ala masculina, os pacientes, já com idade avançada, têm todos a mesma história: são portadores de transtorno mental grave e possuem décadas de internação psiquiátrica em hospitais. Ali, vivem em casinhas em formato de lar ou em pavilhões, num espaço comunitário. Tudo limpíssimo e com a individualidade preservada na medida do possível, como por exemplo lençóis diferentes, fotografias, armários, mesinhas de cabeceira.
Os pacientes transitam por todos os lados, em
liberdade. Conversam entre si e com os visitantes, alegremente. Nos tocam, nos
abraçam, ficam em silêncio, ficam deitados. Vêm a este mundo, vão a outros
mundos. Vão às oficinas de culinária e de jogos, mas nada é obrigatório. E nada
é obrigatório porque a tônica do tratamento, ali, é o empoderamento do paciente
e sua transferência progressiva para fora! Os mais autônomos vão para
residências terapêuticas e vivem com outros usuários dos serviços de saúde
mental, recebendo ajuda financeira do Governo: há ali, por exemplo, um sr. com
90 anos, sendo preparado para sair, pois seu desejo é “não morrer no hospício”.
No Museu Arthur Bispo do Rosário, fiquei com a
frustração por ter visto algumas poucas peças do esquizofrênico que por 50 anos
viveu internado ali, onde criou uma obra artística monumental. E que virou
mito: gênio para muitos, o fato é que sua impressionante obra, composta por
mais de 800 peças, merece uma exposição mais completa e permanente, pois é
justamente o conjunto que faz com que ela seja tão forte, expressiva
e original.
Ao fim da viagem, a vontade que fica é de uma
jornada mais profunda neste universo misterioso que se estende para além da
mente humana, dos muros do hospício, das possibilidades abertas pela Reforma
Psiquiátrica.
Porque os loucos que estão asilados são os menos perigosos: o perigo real mora do lado de fora, onde os doidos de verdade dirigem a 120 Km por hora nas cidades; abandonam filhos e mentem para suas mulheres; passam cheques sem fundos; roubam dinheiro da merenda escolar; recusam-se a atender pacientes que morrem nas calçadas dos hospitais; cobram propinas de empreiteiras; torturam, agridem, estupram, matam, caluniam; misturam amônia ao leite para aumentar seus lucros; desmatam florestas... e mais... e mais...
Porque os loucos que estão asilados são os menos perigosos: o perigo real mora do lado de fora, onde os doidos de verdade dirigem a 120 Km por hora nas cidades; abandonam filhos e mentem para suas mulheres; passam cheques sem fundos; roubam dinheiro da merenda escolar; recusam-se a atender pacientes que morrem nas calçadas dos hospitais; cobram propinas de empreiteiras; torturam, agridem, estupram, matam, caluniam; misturam amônia ao leite para aumentar seus lucros; desmatam florestas... e mais... e mais...
Nunca existiu uma grande inteligência sem uma veia de loucura", vaticinou o genial Aristóteles
ResponderExcluirA Nise da Silveira dizia que cada louco é um artista, cada artista um ser humano, cada ser humano um universo. Como a vida sem a arte verdadeira, na minha modesta concepção, não faz sentido, louvo a luta antimanicomial pela "cura" por meio da arte. Não faço a menor idéia de como seria a minha vida sem contato quase que permanente com a arte dos grandes e prestigiados artistas.Atoo contínuo, faço meu o texto a seguir, pois se talento eu tivesse, diria que o Cláudio psicografou-me.
A genialidade que nasce da loucura
Cláudio Abdo
Artistas geniais, geralmente, só são reconhecidos após a morte. Eles não acompanham o tempo em que vivem e são tidos pelos de sua época como loucos. A genialidade deles só é reconhecida anos após a sua morte quando então há o emparelhamento do tempo e da obra. Por vezes os geniais, como Salvador Dali, não são compreendidos e possuem um pensamento deslocado de tempo e de espaço e por isso são motivos de risos e de deboches dos "normais", daqueles que não conseguem sequer alinhar um pensamento.
Mais difícil que escrever um pensamento é pintar um pensamento. Dali era mestre nisso e conseguia, através de sua arte, expressar suas ideias, pensamentos e sonhos. Suas telas eram a encarnação do pensamento, eram a maneira que ele encontrava de externalizar aquilo que habitava a sua mente e na época em que era vivo nunca fora compreendido. Seu pensamento não era linear e isso causava pânico nas pessoas, além claro, de seu visual "estranho" e contemporâneo demais para esse mundo.
Acredito que existam pessoas que tem a missão de desconstruir a sociedade e os artistas são assim. Eles não seguem o caminho que todos seguem e nem passam nas trilhas já abertas. São aventureiros desbravadores essenciais dentro de um mundo certinho e bem quadrado. São quebradores de ciclos, destruidores de conceitos e construtores da liberdade de pensamento. São mestres em pensar o que jamais foi pensado e campeões em entrar em matas nunca antes exploradas.
Uma sociedade que não valoriza seus artistas é condenada ao "mais do mesmo". Seja na música, seja nas artes plásticas, no cinema ou no teatro, os artistas são os responsáveis por nos deslocarem no tempo. Eles nos fazem pensar e, normalmente, através da polêmica são instigadores de um novo pensamento. Nos tiram da tradicional situação de conforto da sociedade, atrapalham os mais tradicionais e desafiam os mais modernos. Nós sem eles nada seríamos.
Quem dera tivéssemos uma sociedade mais artística e mais livre. Quem dera a nossa sociedade fosse mais cultural e menos careta. Ah se nós pudéssemos entender a mente de um artista, seríamos mais livres. Desejo que a arte seja contemplada e que nós, meros mortais, possamos aprender a respeitar os diferentes pensamentos. Graças aos artistas conseguimos andar para frente e desbravar novos territórios. Que venham mais Dalis, que venham mais artistas "loucos" para nos salvar da mesmice. Santé e axé
Marcos Lúcio
Fernanda,
ResponderExcluirMuito linda sua reportagem sobre as pessoas tidas como "loucas". BRAVO ! Adorei o quadro do Luiz Carlos, e pode sim no meu modo de pensar, que eletrochoques em uma pessoa gravida pode causar disturbio no feto e criar problemas mais tarde .... para mim o periodo de gravidez e muitissimo importante tanto para a mae, como para o feto; tanto a parte da alimentacao sadia, como equilibrio psicologico ...... agora medicacoes pesadas e as drogas .....isso sim causam problemas futuros ........e ca entre nos, quantos casos de depressao profunda foram tratados como loucura em epocas passadas ........e infelizmente ate hoje.
Marcos Lucio, assino embaixo o que o Claudio Abdo tao bem escreveu sobre os"loucos" e voce tao bem colocou no seu comentario..... ADOREI !
Abraco forte, saude e felicidades para voce tambem.
Felicidades,
Gilda Bose
Gilda, querida... você precisa vir ao Rio pra irmos lá comprar umas obras de arte! Com o Marcos Lúcio e a turma dele, é claaaaaro!!!
ExcluirA sensibilidade desse olhar que distingue os ditos loucos dos ditos normais é que anda faltando aos profissionais da psicologia e, por que não dizer, a todos nós. Parabéns pela sua visão lúcida da chamada loucura.
ResponderExcluirhttp://www2.camara.leg.br/camaranoticias/tv/materias/CAMARA-HOJE/191951-BISPO-DO-ROSARIO-A-REINVENCAO-DE-SI-MESMO-E-DA-ARTE.html
ResponderExcluirTambém acho que Bispo do Rosário deveria ter uma exposição permanente para que todos tivéssemos acesso ao seu trabalho, principalmente os turistas estrangeiros. Quanto aos loucos, merecem uma vida digna. Que bom que existem lugares como a esta colônia.
ResponderExcluirRoberto Mário
Fernanda,
ResponderExcluirEu so espero que quando eu for ao Rio voces estejam ai ..... e nao passarinhando rsrsrsr...