segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A morte do amigo imaginário

Acontece com todo mundo. Quem nunca tropeçou numa amizade de mentirinha uma vez na vida? Aquela pessoa que a gente sabe, lá no fundo, que não vale o nosso afeto mais verdadeiro... e no entanto, apesar desta certeza íntima e pulsante, nos deixamos conduzir, como inocentes, pela sedução daquele amigo que nos cativa de modo tão singular...

Mas não há inocência quando se trata de relações humanas, pois aquele que encena um personagem só o faz porque o outro topa acreditar na encenação.
O negócio é o seguinte: a gente sabe que é mentirinha simplesmente porque está pra nascer o ser humano capaz de fingir consideração por alguém. Consideração é coisa impossível de encenar. Nem Fernanda Montenegro ou Meryl Streep, em seus melhores dias, dão conta de uma tarefa como esta.

E o amigo de mentirinha também pode ser um “ás” na sedução, pode arrancar da gente aquelas confidências que nos fazem acreditar que sim, “ali existe uma amizade”, pode mostrar-se ímpar e compartilhar conosco a intimidade do que somos, sentimos, doemos ou já ultrapassamos...

Até que um dia cai o pano e tudo o que a gente vê, sem as cores da sedução, é um ator que já não consegue disfarçar sua natureza.
É que o início de uma amizade é exatamente igual ao começo dos amores que a gente vive, sabia? E o desenrolar também! Amizade e amor são parentes muito próximos, a genética é bem parecida, veja só:

Na maioria das vezes, em que conhecemos novas pessoas, não acontece nada demais. Até que aparece alguém diferente de todo mundo, que tem tudo a ver com a gente, aquela pessoa com quem o tempo é uma delícia de ser vivido. Taí:  é a força da afinidade, da identificação! É como uma luz sobre o outro, que o diferencia de todos os demais na multidão e que o torna especial aos nossos olhos; nada mais que um narcísico reflexo de nós mesmos...  
O mal de tudo isso é que a gente se apaixona por amizades equivocadas tanto quanto por amores equivocados... quando é um amor, a gente sofre, bota um fim no relacionamento e parte pra outra. Mas quando se trata de uma amizade a dor é diferente, porque realmente acreditávamos que "seríamos felizes para sempre".

Hoje em dia, a palavra “amigo” está prostituída e vilipendiada, é uma palavra que tornou-se símbolo de aparências: todo mundo é “amigo” de todo mundo, mas na verdade ninguém é amigo de ninguém. Numa realidade como esta, na qual as pessoas realmente se iludem que ter “um milhão de amigos” no Face lhes dá algum valor, é muito difícil tentar estabelecer verdadeiras “relações”.
A grande questão deste enamoramento pela amizade, desta paixão que faz daquele amigo um amigo tão especial, é que talvez esta identificação seja um engano nosso. Um erro de avaliação, que nos permitimos cometer porque quisemos. E é aí que as decepções explodem e nos ferem tanto: é como a morte, uma ruptura sem volta e inesperada, mas que a gente sempre soube que um dia iria acontecer. 

A gente tem que fazer o luto mesmo, realizar a morte subjetiva deste amigo idealizado que só existia na imaginação e no coração da gente. E isso fere tanto quanto uma morte real, porque se a amizade era de mentirinha para ele, ela era real para nós, o que faz desta perda uma perda verdadeira: o que significa que, se o amigo era de mentira, sua morte é de verdade. E isso dói demais.

 

3 comentários:

  1. Certa vez um amigo meu tinha um terreno pra vender e eu estava à procura de um pra comprar. Estávamos sentados eu e ele num final de tarde falando de coisas e ele não voltava de modo nenhum ao caso do terreno que afinal me poderia ser útil. Eu também em respeito ao seu modo peculiar de ser não falava nada sobre a minha vontade de conhecer o tal terreno e quem sabe, fazermos negócio. Naquele dia especialmente ele me contou que tinha parado de tomar remédio de pressão (pressão alta). Dizia-me que tinha substituído o remédio diário por uma receita de limão que aprendera na roça, lá aonde ele ia diariamente montado em seu cavalo para cuidar de uns bois. Ele era um vaqueiro da cidade, que fugia em seu cavalo da realidade da cidade em busca de outra busca incompreensível a nós. Nesse dia, ele me disse no momento em que eu me retirava: __ Quanto ao terreno o melhor é deixar pra lá, porque com amigo não se faz negócio.
    Duas semanas depois ele foi encontrado quase morto pelo seu filho. Sofrera um infarto e três dias após, morreu no hospital.
    Um dia eu cheguei na casa dele e fui perguntando ao seu filho: __ Cadê o Adelson? O filho respondeu: __ Ele ta lá vendo a TV nova que eu comprei pra ele. Quando cheguei no cômodo onde ele estava, ele olhava pra TV, dessas planas, para um desses canais do boi, olhando os bois, como outra pessoa qualquer assiste um filme ou outra coisa qualquer.

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  2. Fernanda,

    Inspiradissimo seu post, e ao meu ver, muito verdadeiro ......perfeito... BRAVO !!!

    Tenho alguns poucos amigos, que eu sei que posso contar com eles assim como eles podem contar comigo. Ja tive decepcoes, mas e como voce mesma o escreveu nao eram amigos de fato.
    Uma coisa que eu aprendi na vida, que para se conhecer uma pessoa tem que ser comer um quilo de sal juntas ....e mesmo assim certas coisas eu nao comento com ninguem. Aprendi um exercicio que para mim funciona: quando tenho um problema, aconteceu uma coisa que me chocou, alguem fez ou disse uma coisa que me magoou sabe o que eu faco: pego um lapiz (caneta) e uma folha (s) e comeco a escrever como se estivesse tendo um dialogo (monologo) e escrevo tudo que tenho vontade de dizer e depois leio e rasgo. Para mim e como se eu tivesse com a Almalavada.

    Beijos

    Felicidades,

    Gilda Bose

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  3. Excelente post de retorno.Lamento profundamente seu erro de avaliação, coisa da qual que ninguém está imune.Confesso que nunca tive este tipo experiência decepcionante, pois a minha eterna dúvida salvou-me. Ainda tenho raros amigos de adolescência.

    A amizade ou o amor com total liberdade, não precisa acontecer com pessoas exatamente iguais, com os mesmos gostos e vontades, e em certos casos é exatamente esse o fato que une. Ela tem a função de acrescentar ao outro, com suas ideias, momentos de vida, informações, ou é apenas ter alguém para dividir momentos e sentimentos.

    Sem ética, sem confiança, sem liberdade e sem verdade, ela não pode existir. A diferença entre amigos e conhecidos é que os primeiros nos completam, estão disponíveis , podemos contar com eles também nos piores momentos, até em ajuda financeira, se for o caso...já os segundos nos dão a falsa sensação de preenchimento, mas ali não há intimidade ou compromisso.

    Os amigos leais mantêm-se unidos porque descobrem, pouco a pouco (e leva bastante tempo), que têm afinidades eletivas, porque fazem um esforço voluntário de ajustamento recíproco, procurando cuidadosamente o que os une e não o que os separa. É praticamente impossível aparecerem divergências ideológicas radicais, competição, contrastes fortes de interesse, ou de alguém se comportar de forma eticamente incorreta, pois inviabiliza a real relação amigável .

    A amizade é a forma ética (imprescindível) do eros, sem a prática sexual, pois onde existe sexo e amor, acontece ciúme, sentimento de posse, tolhimento de liberdade, vigilância, controle, etc. Também o sentimento amoroso da amizade depende da construção comum de um mundo e da sua identidade. Intensifica-se nos momentos de mudança, de crise, quando nos abrimos ao amigo, lhe pedimos apoio e conselho, com a troca de experiências, enfrentando juntos os problemas, combatendo lado a lado contra um adversário, uma ameaça, como dois guerreiros.

    Não por acaso Sêneca, meu filósofo preferido, tem , por origem, na sua imperdível obra-prima " Cartas a Lucílio", a seminal AMIZADE, virtude que o sábio deve mais apreciar entre todas as outras. E ele não deixa por menos: a boa amizade , quando necessário, precisa de censura, de crítica e jamais pode ser feita por interesses, pois tiramos sua grandeza quando nela vemos, equivocadamente, um meio de ganhar alguma coisa.E mais: só o tempo pode revelar o verdadeiro amigo...por isto paixão (imediatismo) e amizade são excludentes.A primeira escraviza, a segunda , liberta. Amizade é, antes de tudo admiração, reconhecimento e afinidade, desapegadamente.
    Santé e axé!

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