Toda esta história do roubo das fotos da Carolina Dieckmann levanta uma questão fundamental a respeito da hipocrisia em que vivemos. Quando vi a entrevista em que atriz, com a voz embargada e os olhos marejados, diz que não fez nada de errado, tive vontade de dar um abraço nela.
Vítima de um crime hediondo, que é a chantagem, ela acertou ao não ceder e pagar os dez mil reais, dinheirinho miserável diante da situação. Acertou ao chamar a polícia e ao compreender que o mal já estava feito.
Com a farra das máquinas digitais e dos celulares que fotografam e filmam, o povo descobriu que qualquer um pode ser astro pornô em casa, que qualquer mulher pode, na intimidade do lar, bancar a Sharon Stone diante da lente do marido, cacho ou namorado... e a brincadeira turbina os relacionamentos.
Nossa, quanta gente eu conheço que assume este joguinho erótico... e quantos conheço que não assumem, e que apesar disso também se divertem entre as quatro paredes do quarto! Sabe a história do sexshop, que ninguém freqüenta? E como é que existe tanto sexshop por aí?
A mulherada vai à praia de fio dental, desfila pela cidade com suas calças apertadíssimas, marcando cara furo de celulite... as bancas de jornal esbanjam revistas de mulher pelada, as novelas da Globo e os filmes escancaram cenas tórridas de sexo ou erotismo, a Internet está abarrotada de fotos e filmes que mostram todo tipo de sacanagem, a indústria do filme pornô está cada vez mais forte, assim como a liberdade sexual, que só cresce... e as fotos da Carolina vêm causar todo este estardalhaço?!
Hipocrisia total. E só por que ela é atriz da Globo? Não acredito, porque se a mesma coisa acontecer com uma mulher anônima, o estrago moral será o mesmo, não importa se a intimidade for exposta a dezenas ou a milhões.
O corre-corre à Internet para ver as fotos de Carolina deve-se a quê? Ela é uma mulher como qualquer outra: tem uma bunda, dois peitos, pêlos púbicos mais abaixo do umbigo. E só. Tirou as fotos para o marido, exatamente como tanta gente já fez, faz e vai fazer. Teve a infelicidade de ser roubada, chantageada e exposta diante do Coliseu que é a nossa sociedade, esta plateia invejosa, maledicente, sedenta pelo horror alheio...
Chora não, Carolina. A vida é muito mais do que tudo isso. E você não fez mesmo nada de errado. Pelo contrário, fez a coisa certa.
E já que o assunto é o Coliseu em que vivemos, seguem abaixo dois posts que publiquei no Jornal do Brasil, em julho de 2010, quando estava em ebulição o caso de barbárie que chocou o país, ao mesmo tempo em que fez vir à tona a morbidez da curiosidade, da fofoca e da maledicência que envenena o gênero humano:
BRUNO E ELIZA SAMUDIO NA ARENA DO COLISEU
(09/07/2010)
Há alguns anos tomei uma decisão tão difícil quanto importante, e que mudou radicalmente o rumo da minha vida: deixei de acompanhar a cobertura jornalística de casos violentos. Foi uma mudança que mexeu com vários aspectos da minha rotina, afinal de contas sou jornalista! Pra começar, tive que buscar um outro caminho profissional, longe das redações.
Minha vida melhorou muito. Fiquei mais calma, mais confiante na felicidade e venho conseguindo pensar que o ser humano também tem seu lado bom. Porque não se engane... a cada caso escabroso que acontece, nosso subconsciente reforça mais a idéia de que o homem é mau, o mundo é cão e a vida é um perigo constante.
Lamentavelmente, fico por dentro dos detalhes sórdidos de cada crime hediondo que acontece simplesmente porque ando pelas ruas. Agora mesmo, parece não haver outro assunto no Brasil que não seja esta história horrenda protagonizada por seres saídos do Inferno de Dante.
Além do enredo tétrico, a reação popular também me impressiona: realmente não vejo indignação nas pessoas; o que vejo é o público de um imenso Coliseu. Toda a tragédia parece ter se transformado num show macabro. Até o programa da Ana Maria Braga, direcionado às donas de casa que gostam de cozinha e de trabalhos manuais, virou palco para detalhadas reportagens sobre a barbaridade. E a audiência sobe!
O povo, chocado, vai engolindo as informações sem se dar conta de sua curiosidade mórbida, ávida por mais: estamos mesmo na arquibancada do Coliseu, onde não há respeito nenhum pelo sofrimento de Eliza Samudio. O sofrimento dela é a mola propulsora de tudo isso; da mesma maneira que o sofrimento dos personagens da série cinematográfica “Jogos Mortais” estoura a bilheteria dos cinemas... e qual é mesmo o slogan da sétima arte? “Cinema é a maior diversão”.
Ninguém entende como uma das estrelas do time de futebol mais popular do país jogaria fora um futuro de sucesso e dinheiro na Europa para matar alguém __e brutalmente. Minha teoria é simples: as pessoas são o que são. Antes de ser um atleta, tal pessoa seria um assassino da pior espécie, se é que assassinos têm espécies “melhores” ou “piores”.
Todos temos Deus e o diabo dentro de nós. De certa forma, nossa consciência descansa um pouco quando encontramos um Judas pra malhar, e quanto maior a crueldade do Judas da vez, menor se torna o nosso lado negro. A cada crime hediondo que acontece, podemos nos esquecer um pouco nossa própria violência interna; nossos ódios, ressentimentos, cobiças, traições, omissões, desejos de vingança...
É como se, diante de bárbaros como Suzane Richthofen, os Nardoni e a tal “procuradora” que tortura crianças, nós fôssemos a cópia do Arcanjo Miguel.
É uma pena, mas não somos.
ELIZA SAMUDIO NO BANCO DOS RÉUS
(14/07/2010)
Já seria triste se não fosse trágico: ouvir por aí __ou ler, nos comentários enviados ao blog Rio Acima__ as críticas que vêm sendo feitas a Eliza Samudio. O que ela fez ou deixou de fazer para trabalhar não interessa a ninguém: se foi atriz pornô, se fez sexo por dinheiro... alguém aí tem alguma coisa a ver com isso?
Se é absurdo um homem dizer que Eliza fez por merecer, é tristíssimo ver mulheres que também a apedrejam e chegam a presumir o quanto “aquele rapaz deve ter sido perseguido por ela”, dando a entender que a vilã teve mesmo o que mereceu.
Eliza Samudio estava longe de ser santa, eu sei. Mas nós também estamos.
E o caso é que, se é que sonhou mesmo em faturar uma boa pensão alimentícia, até onde se sabe ela não foi suspeita de sequestrar nem de assassinar ninguém... como se vê, sua fama poderia ter sido bem pior, mas não chegou nem perto disso. No entanto, não é pequena a fração da opinião feminina que se volta contra ela, a "pecadora, oportunista, aproveitadora". Até parece que não há por aí mocinhas que sonham com uma boa pensão alimentícia... com filho ou sem. Até mesmo atrizes de grandes emissoras estão neste rol, mas a estas ninguém chama "Maria Chuteira".
Triste demais constatar que as próprias mulheres jogam suas pás de cal sobre o machismo e a violência que se abate sobre suas iguais, para defender gente como o playboy Doca Street, que assassinou Ângela Diniz, nos anos 70: eu era muito nova quando ele foi julgado, mas me lembro da indignação da minha mãe e das minhas tias, ao ver, na televisão, manifestações femininas a favor de Doca. O argumento da defesa? Ele era bonito, ao passo que Ângela era uma “devoradora de homens” cuja vida não valia nada.
O desprezo que o gênero feminino parece alimentar por si mesmo tem raízes culturais. Na Antiga Grécia, evoluída em relação aos bárbaros da época, uma das versões para a história de Medusa conta que ela era uma bela e virgem sacerdotisa de Atena, deusa da sabedoria e da guerra, e foi estuprada por Poseidon, sendo, por isso, transformada em monstro justamente por aquela que deveria tê-la protegido: a própria Atena, furiosa, que a considerou culpada da violência que sofreu! Segundo o poeta e formador de opinião Ovídio, a punição teria sido “justa” e “merecida”...
É de se lamentar que este mundo, tão difícil para a mulher, seja, em parte, resultado das ações dela própria, que educa seus varões sem ensiná-los a respeitar e a valorizar tudo o que seja feminino. Ao contrário: são muitas as que criam misóginos que aprendem a ver as mulheres como “mal necessário”, serviçal ou objeto sexual, cuja vida não tem valor algum.
“Prendam suas cabritas porque o meu bodinho está solto”, dizem as mães dos rapazinhos, cheias de orgulho. Já as meninas, que tristeza... dançam as modernas versões do “Tchan” cada vez mais novas e são incentivadas a acreditar que é melhor desenvolver os glúteos, em vez de investir na inteligência. Quando crescem, são incapazes de se dar valor, porque aprenderam que não valem mesmo nada.