quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Entrevista 2: José, o guardador de carros

"A boa convivência vem da humildade"

Um dia não resisti e levei o gravador para uma conversa mais longa com aquele guardador de carros. De cara ele bancou o durão. “Entrevista?” questionou, cabreiro. “Não confio em jornalista não... sei que a gente não pode confiar neles. Quem me garante que você vai escrever o que eu disser?”. Gostei mais ainda daquele senhor, cuja inteligência e polidez são tão visíveis, mesmo nos poucos minutos que levo para estacionar meu carro na vaga que ele, volta-e-meia, me arranja. “O sr. vai ter que confiar nas minhas intenções...” respondi.
Por sorte, o santo dele bateu com o meu, ele relaxou e conheci melhor o José, carioca de 69 anos que quase não estudou e por muitos anos teve trabalhos braçais, até encontrar o profissão que considera a melhor. Casado três vezes e pai de oito filhos, este novo amigo comprova minha crença de que élan, finesse e inteligência são mesmo dons que vêm na alma da gente.
 

O sr. é carioca?
Nasci no Rio. Peraí que eu preciso atender o cliente aqui. Pronto. Fui criado assim: nasci no Lins e saí de lá com 28 anos, pra Madureira.
 
E onde o sr. já trabalhou?
Num bocado de lugar. Primeiro no mercado, lá em São Cristóvão, mas já faliu. Eu era entregador de compras, e depois passei pro balcão. De lá, fui pra Piraquê, fazer entrega na rua; depois pra Sendas, onde comecei carregando saco na cabeça e terminei chefe de seção. Saí de lá porque não tolerava mais cliente bagunceiro. Eu arrumava a mercadoria na seção de cereais, deixava tudo direitinho e o cliente ia lá e puxava a caixa que estava embaixo de todas. Aquilo estava me saturando, e pra não fazer ignorância com o cliente, que é a prioridade da empresa, pedi ao gerente pra me mandar embora.
 
O povo é sem-educação, né?
É terrível.
 
E depois das Sendas?
Deixa eu ver... fui ajudante de caminhão na Transportadora Goiás, depois fui pra uma outra que eu não lembro o nome... peraí, deixa eu pensar, vou lembrar... ah! Radial! Depois, fui pra barraquinha de cachorro-quente, na praia do Leblon. E deixei pra ser guardador, que dá mais dinheiro. Tô aqui desde 1988.
 
O sr. já está aposentado?
Jáááá... aposentei por idade. De todos os serviços que tive, guardador de carro é o melhor, porque todos os dias eu tô com o meu dinheirinho no bolso. Preciso de um dinheiro? Não preciso implorar um vale para o patrão. Trabalho em média seis, sete horas...
 
Na chuva...
Aaaaahhhh, isso é. Na chuva, no sol, faz frio, faz calor...
 
É um trabalho muito sacrificado.
Minha filha, o trabalho, pra ser bom aos olhos de Deus, tem que ser sacrificado. Serviço mole é problema dos sérios. Nada fácil presta, pode ter certeza.
 
O povo dá muito calote?
Acontece. Já não é tanto hoje em dia porque já tenho uma freguesia que me conhece e está acostumada com a minha maneira de me relacionar, então hoje é mais fácil. Tô aqui há 16 anos.
 
É que o sr. é muito gentil.
É meu dever, minha senhora! Quem lida com o público tem a obrigação de ser gentil, mesmo que a pessoa não seja gentil por natureza, a função obriga a ser. Pronto? Acabou?
 
Não. Tá acabando. Antes me diz quem é que não gosta de pagar.
O caloteiro existe em todo lugar, tem sempre um mau-caráter por aí. A gente tem que aprender a separar o joio do trigo, as pessoas boas das más. E com as más, que tratam a gente mal, sabe o que é melhor fazer? Dar o silêncio como resposta. Se você fizer estupidez pra ele também, vai se igualar a ele. A gente tem que mostrar que pode não ter dinheiro, mas tem respeito pelo semelhante.
 
O público que tem carro grande é diferente do que tem carro pequeno?
Mais vale um cara que chega com um Fusquinha, um Golzinho, um carrinho caidinho, do que o que chega com um carrão. Esse aí geralmente quer humilhar a gente. Eu falo com ele e ele se faz de posudo, finge que não escuta... e o guardador tem que se virar pra fazer ele chegar a uma boa conclusão...
 
Dá pra tirar um dinheirinho bom?
O suficiente pra sobreviver. Melhor do que ser empregado. Eu gosto desta profissão. Chego em casa e tem um negócio pra comprar... se o meu dinheiro não der pra comprar hoje, eu compro amanhã ou depois. O patrão sempre diz “não” quando a gente pede uma ajuda. O ruim é o sol e o mal-humor do cliente.
 
O sr. sabe dirigir?
Não.
 
Nem botar o carro na vaga?
É proibido guardador entrar no carro.
 
Qual o carro que o sr. mais gosta?
Todos. Desde que me paguem, todos.
 
O sr. conversa muito bem.
A vida é que me ensinou. Mas cultura eu não tenho. Estudei até a terceira série, lá por volta de mil novecentos e nada. Você me manda falar, eu falo. Mas escrever...
E ler?
Mais ou menos.
 
Mas o sr. sabe que é muito inteligente, né?
As pessoas dizem. Fico sensibilizado com isso, mas infelizmente... não tenho cultura. Sabe, não é a cultura que faz a pessoa ser educada, é o dom, a natureza, a escola da vida... educação a gente não compra, já vem de berço. Talvez, se eu tivesse dinheiro, não fosse a pessoa que eu sou, nem tivesse esta maneira de falar com os outros. A boa convivência vem da humildade. A pessoa que conhece o sofrimento, quando tem uma oportunidade de trabalho na vida, ela se agarra de unhas e dentes. Entendeu, minha filha? Sabe dar valor. Se eu sair daqui pra procurar outro serviço, não vou ter esta facilidade. Se eu achar quem me dê emprego, vou ter que encarar um salário mínimo, e olhe lá! Hoje, pra arrumar um emprego de gari, tem que saber ler e escrever.

 
O sr. acredita em Deus?
Muito. Sem Ele a gente não é nada. Temos que buscar Deus a todo momento, e agradecer a Ele esta maravilha de mundo que a gente vive. Não é bom trocar o ar nos pulmões? É a maravilha da vida. Se a gente respeita e ama a Deus, as bênçãos vêm naturalmente. E de resto, é só correr pro abraço.



3 comentários:

  1. Sabio ele: a maravilha da vida é "trocar o ar nos pulmôes".

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  2. A verdadeira sabedoria, sem dúvidas, vive na genuína simplicidade.

    Abraço,

    ANTONIO CARLOS

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  3. É conversando com pessoas simples assim,que a gente aprende coisas que nunca imaginávamos um dia aprender...

    Monica.

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