Sorveteria em Ipanema. Cinco da tarde. A enfermeira estacionou a cadeira de rodas ali na entrada.
-- Tem manga, tangerina, limão e abacaxi.
O homem, mais ou menos 80 anos, sussurrou alguma coisa: manga.
Ela estava no balcão quando, na calçada, a moça fez festa para o senhor na cadeira de rodas.
-- Seu Fulaaaaaano! Sou a Beltrana! Filha do Sicrano! Lembra de mim?
Não, o homem não lembrava, mas tentou desesperadamente, eu vi, disfarçar a falta de memória. Sorriu nervoso, com ares de quem queria sair correndo dali.
A moça percebeu, mas era tarde: sua mãe, fragilzinha pela idade, já lutava para sair de trás dela e se aproximar para cumprimentar o homem. Chegou perto dele toda sorridente, feliz pelo encontro e tocou seu ombro, em sinal de uma velha amizade. Murmurou também algumas palavras.
O homem sorria sem-jeito, nervoso, tentava disfarçar sua condição. E enquanto ali, naqueles segundos que voavam, a tal senhora percebia a realidade dos fatos e a impossibilidade de uma conversa (mesmo que rápida) para falar dos bons tempos do passado, outra enfermeira entrava na cena, empurrando uma segunda cadeira de rodas, onde um senhor muito envelhecido e tortinho já sorria.
Postas lado a lado, as cadeiras de rodas aproximaram os velhos amigos, e o que chegava vinha visivelmente contente pelo encontro inesperado em uma calçada de Ipanema. Mas o outro continuava o mesmo, desconfortável com a situação e buscando a enfermeira com os olhos, num pedido mudo de socorro.
O que vinha balbuciou um cumprimento, tocou de leve o joelho do primeiro e rapidamente entendeu tudo. Vi quando o sorriso murchou em seu rosto, como uma flor de decepção. Do meu posto de observadora, senti uma tristeza repentina.
Tudo acontecia muito rápido, mas devagar o bastante para que a força brutal do tempo sobre a vida se mostrasse, completamente nua, a quem quisesse ver. O tempo passa, o tempo nos tritura. O tempo nos devora até o bagaço, não tem jeito.
A moça se despediu do homem, fingindo alegria pelo encontro, e tratou de rapidamente tirar os pais dali. O sorvete já escorria pela minha mão, esquecido, enquanto eu mantinha os olhos na cadeira de rodas do pai, se afastando; na silhueta encurvada da mãe, tão magrinha e de braços dados com a moça. Pensei nos meus pais, que hoje vivem tão longe, sei lá em que planeta estão, e em sua força ainda jovem, que um dia simplesmente faltou. Pensei na minha amiga Marina, aos 87 anos tão jovem por dentro, e já cansada da luta diária com o calvário do corpo.
“Meu corpo virou meu calvário”, me disse minha irmã, já no fim, e eu me escondi no silêncio.
A mulher desconhecida que tomava um sorvete ao meu lado tocou-me o braço, tirando-me de dentro daquele redemoinho de pensamentos, e disse com a voz monocórdia:
-- Envelhecer é uma tristeza. Ficar doente é uma merda.
Minha irmã entrou de novo na situação, trazida pela lembrança do dia em que, já despedindo-se da vida, me disse aquelas palavras:
-- Fernanda, felicidade é subir a rua de casa com um pãozinho quente embaixo do braço, pra comer com um café com leite e bastante manteiga... isto é que é a felicidade: poder tomar um café com pão na cozinha de casa... felicidade é lavar uma roupa branca no tanque, deixar a água cair até que a espuma do sabão despareça, e a água fique bem clarinha... ai, se eu pudesse agora lavar o chão da cozinha!
Olhei o sorvete escorrendo em minha mão, olhei a tarde, meu reflexo no espelho em frente... pensei que meu marido me esperava a duas quadras dali, pra ir pra casa... e tive a certeza, mais uma vez, de que felicidade é uma laranja que tem que ser devorada até o bagaço, enquanto ainda a temos entre as mãos.
QueriDannemann...você vai achar que estou mesmo ficando gagá, pois não é a primeira vez que elogio - demasiada e sinceramente-, um post seu. Mas este, particularmente, fez-me- sem comnparações -, lembrar da Clarice Lispector (sou quase, dela, adicto rs) intensamente e quase não me contive:marejei.
ResponderExcluirFoi, de todos, o que mais emocionou-me(se não me falha a memória rs).Irretocável e indiscutível, além da observação acurada , profunda, amadurecida e cheia de talento. Benza Deus!
Graças a Ele...concordo pletoramente com as sspientíssimas palavras finais da sua irmã (que Deus a tem, claro!). Como desdobramento desta consciência (e, agora, já indiduada, com muiiiiito esforço e leitura, mas incompleto e imperfeito como qualquer mortal), possuo esta mesma e idêntica convicção: "felicidade é uma laranja que tem que ser devorada até o bagaço, enquanto ainda a temos entre as mãos".
Aplausos, minha neguinha!!!
Santé e axé!!!
Marcos Lúcio
Ô meu querido... mas agora que marejou fui eu...
ExcluirFernanda,
ResponderExcluirQue sensibilidade ....... a gente aprende tanta coisa so em observar, nao e mesmo. Feliz daquele(a) que tem olhos de ver como voce o tem.... Parabens !!
Para mim a felicidade esta tambem nas coisas mais simples, seu tema tao bem descrito sobre o envelhecer, me fez lembrar do poeta Mario Quintana:
DA FELICIDADE
Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!
Felicidades.
Gilda Bose
Gilda, sou apaixonada por Mario Quintana!!!
ExcluirEu agradeço a Deus todos os dias,por ter a minha avó materna com 90 anos,e ainda bastante saudável.
ResponderExcluirMonica.
Que sorte ter uma avozinha...
ExcluirMonica, Benza Deus !
ResponderExcluirSua avo e para ser tratada a "pao de lo", por favor peca a ela algumas dicas ... bjs, Gilda.
Ô Gilda,e eu a trato a "pão de ló"mesmo.Eu sou a neta mais nova dela,talvez por isso ela sempre teve um carinho especial por mim,e com isso eu também me apeguei a ela de tal forma,que ela mora comigo. E não se preocupe,que dicas de longa vida,vou pedir a ela para nós duas. rs Bjs.
ExcluirMonica.
Envelhecer incapacitado, física e/ou mentalmente, realmente, significa, em meu entendimento, a própria morte... decadente. Quando papeio com o Cara lá de cima, peço-lhe que , quando chegar minha horam ela dê-se, tipo enfarte fulminante, sem humilhações como a vivenciada pelo SR. pouco á vontade, até mesmo, com manifestações de carinho. Até lá, procuro viver da melhor maneira possível, estando, ainda, na fase de suco, sem espremer o bagaço, que desejo, reitero, não vivenciar.
ResponderExcluirANTONIO CARLOS
Esprema o bagaço da vida, Antonio Carlos!
ExcluirMaravilhoso post
ResponderExcluirObrigada, Isadora!
ExcluirNão nasci pra sofrer. Se por ventura sou atacado por um sofrimento, minha natureza começa logo a procurar uma saída, um jeito de diluir a coisa ruim e retomar a vida. Mais do que o romance, que é bom, ficou para mim o título do livro: A Insustentável Leveza do Ser. É realmente insustentável a felicidade e ela, está muito mais, para mim também, em subir a rua com o pão quentinho e tomar café na cozinha e ouvir minha tia (a última agora), falar da economia de vinte centavos que ela fez, pegando dois ônibus para ir num sol de rachar e, dois para voltar. Uma alegria nostálgica ouvi-la. Um nó do tempo, uma reposição e abstrações enquanto o torrado do pão quentinho é estalado na boca, do pão, com manteiga de verdade sem colesterol no pensamento solto em devaneios, planejando rente, curto como é o tempo de todos nós.
ResponderExcluirAlfredo, somos do mesmo time (ou será do mesmo planeta?): eu também nasci pra ser feliz!!!
ExcluirLINDO! LINDO! LINDO!
ResponderExcluirConcordo em número, gênero e grau; em outras palavras venho dizendo e vivendo exatamente isso nos últimos tempos.
Graças a Deus, é exatamente do amor pela simplicidade que venho tirando
o néctar que alimenta minha alma nestes tempos tão econômicos...
Lamento, só me sentir muito sozinho... gostaria de ter mais alguém ou mais alguns que também estivessem nessa sintonia de viver o simples, na certeza de que é no simples que a felicidade flui melhor... enfim, vou vivendo e agradecendo... minha felicidade é e sempre foi "apesar de" e há muito que faço essa cantilena... de vez em quando até muito criticada.... mas, fico feliz de saber que mesmo através de uma crônica, alguém também despertou para esta realidade tão óbvia e tão pouco conhecida... e se conhecida, pouco exercida.
N. Lima
N. Lima, você encontrou a sua turma: aqui no Alma Lavada tá cheio de gente que pensa como você. Volte sempre, portanto, e, quando quiser, dê o ar da sua graça aqui nos comentários. É como eu sempre digo: os comentários é que dão vida ao blog! Abraços!
Excluir