terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Filho deveria ser proibido de morrer

Eu tinha 17 anos e caminhava entre as sepulturas do pequeno cemitério lá na cidadezinha de Minas: tinha ido visitar o jazigo dos avós que não conheci e dos tios que perdi muito cedo: gostava de ler seus nomes nas plaquinhas presas aos túmulos e de passar os dedos sobre as letras.

Entre as sepulturas, vi um homem sentado no chão. Chorava com uma tristeza sem fundo, com os olhos transbordantes de uma desesperança implacável. Era tanta solidão e desespero que me sentei ali com ele e compartilhamos um maço de cigarros que eu fumava escondido, enquanto ele soluçava e falava do Gilmar.

Seu nome era Paulinho Sinhá. Gilmar era o filho mais novo, um menino bonito que teve a infelicidade de ser homossexual no interior de Minas, há quase trinta anos: sem qualquer possibilidade de compreensão ou respeito pelos mineiros de então,lembro que o Gilmar se escondia numa falsa coragem para encarar o escárnio do povo. Imagino o quanto devem ter sofrido os dois, pai e filho, devido à natureza tão distinta de ambos... a mesma natureza que, através de um ataque do coração, levou para sempre o Gilmar.

Anos depois, ouvi sem querer o meu pai dizer a um amigo que havia sim, sofrido muitos revezes e perdas na vida, mas que não há como sair vivo de um cemitério se o filho ficou lá. E eu pensei em seu coração, cuja metade esquerda havia literalmente necrosado dentro do peito, e em seu rosto que envelheceu tantos anos em um ano só.

Lembro da tia Leléia e de uma prima distante lá em Minas, a Loló, que perderam seus filhos jovens e carregaram para sempre, como tatuagem sobre o rosto, a sombra que a morte deixou para trás.

Penso nas famílias inteiras que estão órfãs de alguém, lá no Rio Grande do Sul... órfãs de um filho, um sobrinho, um irmão, um neto, um amigo. Quem foi que disse que a gente só fica órfão de pai e mãe?  E aí me lembro da noite em que vi, estendido na rua Barata Ribeiro, o corpo de um rapaz muito jovem, de cabelos escuros e lisos, e a motocicleta arrebentada mais adiante. A polícia afastava os curiosos e eu, através da janela do ônibus, podia ver, ali no chão, junto do corpo e do sangue, o futuro sem futuro da mãe dele. Pensei que, talvez, aquele exato momento fosse o último em que ela teria sossego para ver uma novela, para conversar com uma vizinha, para lavar uma louça ou reclamar que o rapaz agora andava de moto por aí. Pensei que o telefone ia tocar na mesinha da sala e ela teria, a partir dali, uma espada para sempre fincada no coração. Se é mesmo verdade que o sofrimento enobrece a alma, é assim que qualquer mãe neste mundo torna-se Nossa Senhora das Dores.

Filho deveria ser proibido de morrer.

16 comentários:

  1. Muito bom o texto. Eu, que tenho um filho universitário, não consigo sequer imaginar o que é passar por um horror como este.

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  2. Muito comovente e oportuno seu post, além de inspiradíssimo e destaco:
    "Se é mesmo verdade que o sofrimento enobrece a alma, é assim que qualquer mãe neste mundo torna-se Nossa Senhora das Dores".

    Nessas farras de juventude, em tempos de antanho, e ainda sem drogas- excetos o álcool e o cigarro -, escapei da tragédia por sorte e, muiiito mais ainda pelo zelo (alguns menos sensíveis consideram cuidado excessivo) da boa e atenta mãezona mineira. Era destes feriados de Semana Santa, sexta-feira da paixão, e havíamos programado (grande e festeira turma) um churrasco em sítio afastado da cidade. Como a matriarca frequentava e ainda frequenta igreja, agora com 84 aninhos, bateu pé e disse que era pecado fazer algazarra neste dia e que, então, eu esperasse (nossa! tô comovido...), pois sábado de Aleluia estava às portas e eu que adorava carnaval (ainda adoro, mas o autêntico, com sambas e marchinhas e frevos e nada mais) esperasse só um cadinho.Fomos muito bem educados, inclusive no que concerne respeitar pai e mãe, daí, não pude reclamar e acatei , pois sempre há alternativas, para alguns de nós criativos e entusiasmados.
    Qual não foi meu espanto, horror, desespero, tristeza e quase incredulidade (depois e até hoje, gratidão pela total atenção materna) quando , ao final da tarde daquele fatídico dia, recebi a notícia (no interior as notícias se espalhavam mais rápidas do que na intenet rs) que um acidente terrível havia acontecido com aquele grupo... com mortos, feridos e até a mais bela garota perdeu a mão, dentre outras absurdidades. Foi exatamente o coração da mãe, na mão, conforme comentou o sr. Alfredo ,que salvou-me, pela segunda vez, de um destino medonho (antes ela já havia salvado, já relatei em outro comentário).Hoje em dia, lamentavelmente, sei de alguns pais que nem notam quando os filhos colocam piercing no nariz, não sabem onde vão, muito menos com quem e, menos ainda, fazer o que.

    Quanto ao pai no túmulo do filho que teve como imperativo biológico ou cadeia causal ou universo determinístico a homossexualidade (má sorte do garoto , nesta idade e naquela época, no interior, a carga era mais pesadíssima e o suicídio de alguns jovens com esta característica inata era e ainda é um fato). Ainda hoje , este tipo especial de sexualidade, é intolerado e incompreendido por 11 entre dez pais, exceto os raríssimos que se resignam.Imagino que o ataque do coração- por tamanha pressão, cobrança e sentimento de culpa-foi um recurso da sábia natureza, para mitigar o sofrimento da via crucis do garoto ( o escárinio do povo, a vergonha dos pais, o "pecado" religioso, o bullyng na escola, etc.).

    Quanto ao choro incontrolável do pai, talvez tenha sido a forma como o (in)consciente dele processou: foi mais difícil aceitar a natureza sexual viva do meu filho ou é mais difícil aceitá-la morta?Ou pode ter chegado à triste conclusão de que não conheceu nem quis conhecer a natureza homoafetiva do filho que Deus lhe deu.Ou, ainda, imaginou o quanto de solidão padeceu o filho em vida, sem ninguém para dividir este tipo de fardo existencial. Pena que ainda existem muitas vítimas de preconceitos ou ignorãncia científica com relação a sexualidades, sofrendo inútil e injustamente neste mundo ao Deus dará.Em qualquer situação ou contexto..."Filho deveria ser proibido de morrer.
    Santé e axé!
    Marcos Lúcio

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    1. Um adulto tem condições de entender assim, quando consegue, principalmente se não esteve no olho deste tipo de furacão rs, ainda o maior preconceito sobre a terra....A questão aqui não é de discordância... é de fundo moral, religioso e social (e os pais se envergonham desta característica - o que os vizinhos vão falar, meu Deus! rs -, compromentendo, destarte, o amor incondicional, segundo psicanalistas e estudiosos da questão... e sei por experiència própria e de todos - sem exceções - que conheço com esta natureza especial).

      Com bom humor e sem neura - já é fato bem resolvido há muitos anos _, sei que nas mesmas condições de capital cultural e religioso dos meus pais, talvez, agiria igual e eles que "preferiram" ignorar.Lembro que a tragédia da vida da criança é que ela já tem dificuldade de reconhecer amores mais explícitos e desinibidos e tudo o que ela quer é ser amada , incondicionalmente, e, claro, não quer decepcionar os pais por medo de não ser amada, marrelógico.

      Imagine, então, a impossibilidade da criança perceber este amor oblíquo e envergonhado, né? Coloque-se na situação, sem entender, sem saber que tem nome, mas percebendo que alguma coisa tá fora da ordem rs. Não culpo ignorâncias paternas...busco entender os motivos e, se possível, levar luz às trevas do conhecimento de futuros pais.
      Santé e axé!

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    2. Salvo algumas exceções, que realmente existem, e talvez Freud explique, os pais amam os filhos acima e apesar de qualquer discordância. O que não significa que, no decorrer do cotidiano da vida, muitas vezes este amor não fique escondido entre as dobras invisíveis destas mesmas discordâncias.

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  3. Fernanda,eu tenho uma amiga que perdeu um filho há alguns anos,e certa vez perguntei pra ela,qual a dor maior,perder um filho,ou a mãe? E ela me respondeu sem pestanejar,que a maior dor,é a da perda de um filho. Bjs.

    Monica.

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  4. Basta dizer que daríamos nossa vida sem pestanejar por um filho. Daí se dimensiona a dor dessa perda.

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  5. eu acheio muito melancolico meu deus quanta tristesa

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  6. Tenho dois "meninos": 29 e 34. Ambos distantes de nos, mas tao dentro dos nossos coracoes e pensar! Eles tem a obrigacao de mandar cremar a gente e, para tanto, tem o dever de seguir vivendo!!!

    Deveria existir uma Lei (mas teria que ser Divina) determinando que NUNCA um filho moresse antes dos pais...

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  7. há muito, brinco com meu filho, que ele está proibido de morrer, exatamente, como no título de sua inspirada postagem. Quando ele aida era criança, também brincava que era meu filho preferidol Ele compreendia a brincadeira e respondia-me rindo : eu sou seu unico filho, caindo ambos em largas gargalhadas. Pois, há pouco mais de dois anos, antes de concluir a Faculdade, quase desobedeceu minha proibição. Sua moto foi atngida por um carro, num sábado de madrugada, quando tinha acabado de deixar sua namorada em casa. O scidente resultou em fratura da mandíbula, reimplante do polegar da mão direita, escoriações generelasidas por todo o corpo, ficando internado por dez dias. Felizmente, sobreviveu, mas não vendeu a moto, como prometeu à mãe e a mim, que iria fazer. Caso a namorada estivesse na garupa, teria morrido, pois foi alí que o carro atingiu.. Foi duro vê-lo tão machucado, não conseguimdo falar por muito tempo, por conta da fratura mandibular.
    Torro a paciência dele prá não sair de moto, com tempo ruim, não beber, reiterando que está proibido de morrer.
    Creio que não deve mesmo, haver dor maior que perder um filho. Agride a lógica da vida. Não faz sentido. Subverte o tempo.
    De fato, em qualquer cultura, em qualquer classe socio-econômica, seja qual for sua cndição sexual, religiosa,política..FILHOS ESTÃO PROIBIDOS DE MORRER.

    ANTONIO CARLOS

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  8. Embora triste, o texto me faz refletir muito porque também sou pai.
    Atualmente estudo a doutrina espirita, ela tem me reconfortado muito acerca da morte, que por sinal é inevitável. Porém somente o corpo desaparece.
    Sergio.

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    1. Sergio: Eu também estudo a doutrina espírita e aos poucos vou entendendo melhor a morte, o fim do ciclo, porém, deixar para trás pessoas que dependem emocionalmente de nós é difícil até mesmo para qualquer espírita elevado, quanto mais para mim que engatinho nesta vida.

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  9. Minha mae, que perdeu o seu primeiro filho, quando eu tinha apenas 36 dias de vida, um dia me disse: uma das loucuras que posso dizer que faz sentido e a da perda de um filho .....

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  10. Fernanda.. como sempre sigo suas publicações, o nome do pai do Gilmar era Paulinho Sinhá, Baltazar é meu pai.. percebi a troca de nomes,o único Baltazar que tem aqui é meu pai..vc deve ter-se confundido por pq a sorveteria q era propriedade do meu pai foi vendida à ele...
    Abraços.. Andréa Glaucia

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    1. Oi Andréa! Fico feliz que você continue aqui no Alma! Aconteceu exatamente isto: me confundi por causa da sorveteria mesmo! Achava que Baltazar e Paulinho Sinhá fossem uma pessoa só! Nunca me esqueci daquele meu encontro com o Paulinho Sinhá (que eu pensava ser o Baltazar...). Como é que ele está? E a esposa dele??? Aproveita e diz ao seu pai que também nunca me esqueci dele e de quando ia lá, tomar sorvete, e pedia pra ele caprichar na bola... e ele caprichava mesmo! Aquela sorveteria está entre as minhas melhores lembranças da infãncia. Um beijo!

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    2. Querida Fernanda.. meu pai ainda continua firme e forte e ainda com sorveteria, está com 77 anos, Sr. Paulinho infelizmente faleceu no dia 10/01/2013, sua esposa D. Gladys está bem embora tenha passado por cirurgia cardíaca à alguns anos atrás.
      A sorveteria ainda existe só que em outro lugar, na rua de casa que é perto do Umuarama Clube, e se um dia resolver relembrar sua infancia e adolescencia me avise...passando por aqui não vai deixar de tomar o "Sorvete do Baltazar" que é famoso por aqui, dia dessas falei do seu blog com a Paula Peres, ela agora q esta aprendendo a usar internet (segundo a própria) qto continuar seguindo seu blog , vou continuar enquanto ele existir, pois ele realmente me encanta!!!
      Grande beijo para vc e um ótimo FDS..^^ Andréa Glaucia

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    3. Andréa, obrigada por responder. Fiquei triste em saber que o Paulinho Sinhá faleceu. E achei realmente incrível ter escrito sobre ele aqui no blog justamente no mês do seu falecimento. Não acredito em coincidências: acho que aqueles momentos que tivemos juntos de alguma forma nos uniram. Acho que ficamos amigos apesar de nunca mais termos nos visto, e mesmo que ele tenha se esquecido de mim. Por outro lado, fiquei contente em saber da sorveteria, peço novamente que diga ao seu pai que não me esqueço dele. Avisa à Paula Peres que escrevi um post em que falo dela: é o "Muitas possiblidades brotam de uma única perda". Agradeço por você gostar do blog: isto é que me motiva a escrever. Volte sempre e quando quiser apareça aqui nos comentários. Beijão!

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